Quis dizer: a mãe 'sem juízo'

Quis dizer é ficção. Ficção que fala de verdades. Verdades doídas. Verdades absurdas. Verdades para as quais muitas vezes preferimos fechar os olhos e os ouvidos. Verdades ocorridas num Brasil de outrora. Verdades que ainda atravessam outras terras, algumas distantes, outras ao alcance de poucos passos. Verdades que fundam-se na repetição de velhos abusos e na pregação de perigosas certezas.

A repetição dos velhos lugares comuns. Coisas como: 'há quem veio ao mundo para obedecer. E quem saiba comandar'. É que soa menos manipulador 'comandar' ao invés de mandar. A verdade é que aprendemos desde pequenos que 'manda quem pode e obedece quem tem juízo'. E quem não tem juízo?

Quem não tem juízo pagará por isso. No melhor dos casos será isolado do rebanho. Haverá também quem terá que pagar com a própria vida. Para outros o preço será a sanidade. Há quem perderá o direito de ser gente. E há quem será transformado em restos. Qual a punição menos doída? Não cabe a mim decidir. A minha função é  denunciar as atrocidades cometidas (e as atrocidades por cometer) por regimes ditatoriais.

Em Quis dizer trago à tona algumas dessas violências. Tento mostrar o rastro inapagável que a violência carrega consigo. Em Quis dizer há a mãe. Personagem que traz intrincada na sua história a impossibilidade de ser terrorista e heroína ao mesmo tempo. Ela pagou caro por ter decidido não obedecer. Dentre as punições de que foi alvo estão estupro, tortura e a perda do direito de ser mãe. Por fim, desapareceu. Como milhares de homens e mulheres que ousaram lutar contra poderosos desapareceram e ainda desaparecem, todos os dias.

Mesmo depois do corpo da mãe ter desaparecido a violência de que ela foi palco continua a ter voz. Grita nos ouvidos do filho, que cresce sem saber dizer se a mãe foi uma terrorista ou uma heroína. Rasga a casa do filho e da vó, que não encontram forma de caber num mundo que só sabe rotulá-los como os próximos da terrorista.

 É a violência a que a mãe foi submetida que traça os rumos dessa história. Ela é traço fundamental na definição do menino que sente que tem que gritar uma injustiça, MAS que não aprendeu a abrir a boca. É que uma das exigências da ditadura que caiu-lhe encima é que ele tinha que ficar calado.  Sempre e para sempre calado. 
Foto by Chris Lindemann 


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