Natal é para ficar triste


por Caroline Stampone 

Uma família onde o Natal sempre esteve morto. Desde o dia em que nasci o Natal esteve morto. Não questionei. Era assim que era. A mãe disse que o Natal era época de tristeza profunda e nós aceitamos. Sem questionamento. Era assim que era. Sempre. A mãe nunca questionada. O Natal sempre morto.
Daí os anos passaram e comecei a ir para a escola. Lá toda a gente falava do Natal. Antes e depois. Como dever de casa a professora mandou a gente escrever uma redação que tivesse como tema: 'e assim foi o meu Natal...'
Escrevi nada. Disse nada. Daí um dos meus coleguinhas perguntou:
_ Como foi o seu Natal?
Respondi que não tinha sido. Natal inexistente. 
O meu coleguinha quis saber por que.
_ É que vovô morreu.
Frente a morte toda a gente fica calada. A professora nem mesmo fez reprimenda por eu não ter feito a lição.
Daí, no ano seguinte aconteceu tudo outra vez. Antes do Natal falar do Natal era obrigação. Os sonhos, as expectativas. Depois do Natal falar do Natal era lição de casa. A famosa redação: "e o meu Natal foi assim". 
_ O que você vai pedir para o papai Noel?
Eu em silêncio. Natal era época de ficar triste. De novo.
Volta as aulas. A professora era outra. Mas mandou a gente fazer a mesma redação. Eu não fiz. O coleguinha perguntou outra vez:
_ Como foi o seu Natal?
Outra vez respondi que inexistente. O coleguinha quis saber por que. Repeti:
_ Porque vovô morreu.
Dessa vez ele deixou escapulir um sonoro 'aaaaaaaaaaaaaah'. E foi tudo. Em seguida o velho silêncio e  a conhecida aceitação.
Daí, no ano seguinte, tudo de novo.
O meu coleguinha:
_ Como foi o seu Natal?
Eu:
_ Não existiu.
_ Por que?
_ Porque vovô morreu.
Dessa vez não teve o aaaaaaaaaaaaaaah como o do ano anterior, nem tampouco o silêncio costumeiro. O meu coleguinha quis saber quantos avôs eu tinha.
Cheguei em casa e perguntei à mãe justamente isso:
_ quantos avôs eu tenho, mamãe?
Ela respondeu que  eu sabia muito bem que só tinha dois. Um vivo e um morto.
_ Então por que temos que ficar tristes todo Natal pela morte de um único avô?
A mãe me deixou falando sozinho. Acho que foi para o quarto chorar. Lágrimas de culpa. 
O pai mais tarde explicou-me que o meu avô, o pai da mãe, tinha morrido em noite de Natal. Desde então tinha virado obrigação ficar triste durante o Natal. 
_ E vai ser assim para sempre?
O pai olhou para os lados, para ter certeza que a gente estava sozinho e daí disse: 
_ Tem que parecer assim pra sempre. 
Explicou-me que tinhamos que ser figuração na tristeza da mãe. Cada pessoa tinha um jeito de viver o luto. Aquele luto da mãe ia ser eterno. A gente tinha que respeitar e fingir a nossa tristeza o melhor que pudéssemos. Isso era parte de suportar um ente querido. 
Nos Natais seguintes fingi o melhor que pude. Na escola conversava sobre natais fictícios como se fossem verdade. As vezes eram pedaços de coisas que eu tinha visto na Tv. As vezes invenções minha mesmo. Quase sempre uma mistura do que via, ouvia e imaginava. Com o passar dos anos passei a reciclar histórias. O que não era problema. Afinal, o Natal de tanta gente é sempre igual. 

Quando tinha doze anos percebi que a vó não estava triste durante o Natal. Era verdade que ela usava preto e a cara triste, como eu e o pai. Mas, ao contrário da minha mãe a vó não estava triste e nem curvada pela culpa.
_ Vó a senhora sente saudades do vô? 
_ A vida é muito curta para saudades. O seu vô foi o meu marido. Respeito a memória dele, nunca vou casar outra vez. 
Ainda tentei dizer que não era isso o que eu tinha perguntado. A vó foi logo dizendo que éramos sempre nós e as nossas circunstâncias. O vô tinha sido um pedaço pesado das circunstâncias da vó. Mas eu ainda não sabia disso. 
Quando fiz dezesseis anos fiquei sabendo que a vó não tinha casado por vontade própria. Tinha sido imposição dos que mandavam nela. Na época amava outro. Seu primeiro e único amor. Aprendeu cedo que o amor por um homem não seria parte das suas circunstâncias. Aprendeu também que as vezes cedo podia ser tarde demais. 
Casou-se. Ele tinha 53 anos e uma esposa morta. A perfeita esposa morta, que carregou pela casa durante cada dia de sua existência, ao lado da garrafa de cachaça. 
A vó gastou-se vinte anos prenha. Quatro rebentos já estouraram mortos. Os outros tiveram a chance (ou seria o fardo?) de lutar. Uns acabaram cedo. Outros mais tarde. Alguns ainda duram. Dentre os quais, a minha mãe. 
Quando chegou a hora do vô acabar a vó fez a cara de triste, a cara que as suas circunstâncias de viúva exigiam. Mas a verdade é que estava pela primeira vez a conhecer a liberdade. 
Quando o vô finalmente morreu a vó não derrubou uma lágrima. Quando perguntaram porque, ela disse que tínhamos que respeitar a vontade de deus. Se ele tinha decidido que era hora de encontrar-se com o seu falecido esposo, que assim fosse. Amém!
A verdade é que a vó não chorou porque o marido morto não ia poder beber todo o dinheiro que devia ser usado para alimentar as crianças. Com o marido morto não haveria mais necessidade de passar fome, nem tampouco de esconder as marcas da insatisfação dele que ficavam grudadas a pele da vó. Ela não era a esposa morta. E cada vez que ele se lembrava disso tinha que lhe dar uma bofetada.
Quando fiz dezoito anos finalmente percebi que a vó estava aliviada durante o Natal. Quase feliz. É que a vó só tinha começado a se lembrar do que a felicidade poderia ser depois que o vô tinha acabado. Com a partida dele ela já não tinha mais que ser punida por não ser a esposa morta. Não tinha que aguentar os gritos e todas as outras violências. Não tinha que assistir os filhos encolhendo de medo e fome. 

Faz cinco anos comecei a reparar que todo Natal a vó compra uma geladeira nova. Natal passado foi assim. Natal seguinte há de ser também. 
No último Natal finalmente perguntei-lhe: 
_Por que a senhora comprou outra geladeira nova, vó? 
Sabe o que ela respondeu. 
_ Uma pessoa tem que redecorar o ambiente se não quer dar espaço para fantasmas. 
Eu não disse nada. Mas bem sabia que o vô era o nosso fantasma de Natal. 

Esse pedaço de história é parte de um projeto em andamento. A minha primeira novela em língua estrangeira. Ainda sem nome. Habitada por fantasmas do passado e histórias de família. 

um abraço e 'inté' 

ps: No próximo post vou expor algumas das inspirações que Stories e Coffees plantou num dos meus projetos atuais. Um livro de contos que tem como tema 'a minha revolução começou quando'.

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