dia de Maria

por Caroline Stampone 
Esperava por um abraço. O dia tinha sido longo. As crianças, o cachorro que ele tinha arranjado, amado por um dia e depois largado pela casa, o café da manhã dele, as cuecas a serem passadas, as garrafas a serem recolhidas, o lanchinho das crianças.
Peguei o ônibus e parei na creche, depois corri para o supermercado. Mesmo saindo de casa quando o sol ainda nem tinha dado as caras direito, acabei por chegar atrasada. É que a segunda condução quebrou no meio do caminho, o que me fez perder o terceiro ônibus. Aí não teve jeito, cheguei atrasada. Depois de implorar ao supervisor para que me desculpasse, só dessa vez, e jurar pela alma do meu falecido paizinho, que isso não ia se repetir, ele aceitou não me dar uma advertência, desde que eu pagasse o atraso na minha hora de almoço.
Hora de almoço? A verdade é que era luxo quando eu tinha quarenta minutos. Em dia de promoção então. Se eu conseguisse quinze minutos já era razão de festa interna. Mesmo sabendo disso tudo não disse nada ao senhor supervisor. Não tem bicho mais perigoso no mundo do que homenzinhos agarrados a migalhas do poder. Disse muito obrigada, de cabeça baixa, e corri para a caixa registradora.
Gastei o dia a ver o consumo alheio ser escaneado. Foi tanta gente que apareceu que nem tive tempo de imaginar a vida das pessoas. Geralmente consigo fazer um filme inteirinho, enumerando os porques, com quem, quando e o até onde das pessoas e de seus trimiliques. O meu pai costumava chamar de trimilique tudo o que a gente compra. Meu pai também era um homem de imaginação. Dizia que quando a vida não tem cores em si mesma, a gente tem a obrigação de inventá-las.
"Fia, vai ali na venda e me compra um trimilique doce, aquele cor de abóbora que o pai gosta".
O pai foi o único homem bom que conheci. Acho que era tão bom que esgotou a bondade a que eu tinha direito.
Não sou casada não, amigada mesmo. Mas, acho que amigo amigo a gente nunca foi. No começo ele foi galanteador. Disse que eu tinha olhos bonitos, segurou a minha mão. Daí eu embarriguei. O pai dele disse que era obrigação dele casar comigo. A mãe dele disse que eu era uma puta. Ele resolveu ficar no meio do caminho. Alugou uma casinha e meteu a puta lá dentro.
Dia sim e dia também ele me chama de puta. Quando são só os xingamentos eu já nem ligo mais. Difícil mesmo é quando ele bebe além da conta.
Tinha que chegar na creche as 17.30, mas só consegui sair do supermercado as 18.15. Agarrei as crianças sem forças, a marmita fria a me esperar na bolsa. Sabia que tinha a obrigação de me desculpar com a mocinha mal paga que cuida dos filhos dos outros. Eu estava atrasada outra vez, eu sabia. Sentia muito, mas era dia de cheque pré-datado, e ela sabia como era, num mundo tão cheio de pobres, dia de cheque pré-datado tem o mesmo iboque que dia de milagre. 'Se não tiver mais', ela respondeu com um sorriso minguado.
Acho que foi a gentileza cansada dela que abasteceu a minha esperança tola. Era hoje.  Hoje quando chegasse a casa ele ia finalmente me dar um abraço.
Foi o caso não. Mal adentrei a porta ele veio logo agarrando-me pelos cabelos. Em seguida veio um violento tapa na cara. Murros pelos corpo todo, xingamentos. No começo ouvi ele dizendo que era tudo culpa minha, se eu não tivesse embarrigado a vida dele seria outra. Ele gritou que eu era uma puta, vadia, vagabunda, e já nem sei mais o quê. Consegui pedir a minha maiorzinha que fosse para o quarto e cuidasse da pequena. O pai tinha que conversar com a mãe. Estava tudo bem. Ia ficar tudo bem, ela não precisava chorar. Eu queria ser capaz de acreditar no que eu estava dizendo para a minha filha, mas a desesperança já tinha dominado os meus ossos outra vez. 


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