um começo do eu e da escrita

Começos são sempre coisas inventadas.
Invento um começo meu. O começo do eu e da escrita.
Um começo que esbarra na minha descoberta do poder.
Foi quando tomei consciência de que escrevia, que aprendi o significado do poder e do estatus.

Era uma vez uma menina de dez anos que cabia perfeitamente no estereótipo da aluna a ser zoada_ ou segundo o vocabulário atual_ tratava-se de uma vítima ideal de bullyng. Essa era eu. Óculos, aparelho nos dentes, mais alta do que todos os outros, andar desengonçado. Sempre que falava cuspia, porque o aparelho móvel insistia em não caber na boca. Enfim, material inesgotável para a crueldade das crianças.
Tudo sugeria que era isso o que aconteceria. Episódios incontáveis de bullyng até a hora de crescer e fingir-se livre.
No entanto, deu-se  caso de acontecer o improvável. Tudo começou  com a decisão de uma das professoras. Ela decidiu que sexta feira seria o dia das redações. Nós, os alunos, deveríamos escrever em casa e gastaríamos as horas todas de sexta a ler em voz alta o que tínhamos parido no papel. Segundo ela, aqueles exercícios semanais iriam ajudar no desenvolvimento da nossa criatividade. Por mim, eles fizeram muito mais. Foram responsáveis por uma inversão de papéis. Deixei de ser oprimida e aprendi a oprimir.

Não lembro exatamente porque. Mas, afinal, se os começos são inventados também posso inventar seus porquês.
Enfim, porque sentia-me isolada e desrespeitada, resolvi vingar-me, através da ficção. Arrastei os meus colegas de classe para as minhas redações. Descrevia-os em situações constrangedoras. Aqueles que me tratavam melhor eram os heróis e heroínas das minhas histórias, as quais eram aventuras bem elaboradas e bastante contextualizadas. Ao menos é assim que sinto lembrar-me delas.
Quando li a minha primeira redação em voz alta muitas foram as risadas. O sucesso estava garantido. No intervalo, muita gente que nunca tinha falado comigo veio dizer que tinha gostado da minha redação. Teve quem pedisse para ser retratado de outra forma na próxima. Teve até quem desse sugestões sobre como terceiros deveriam aparecer nas minhas ficções.
Todos queriam um lugar de destaque nas minhas redações, que passaram a ser o ponto alto das aulas de sexta feira.
Eu, que antes era alvo das crueldades dos outros, passei a ser a agente da mesma. Talvez não tenha percebido na época. Mas, agarrei-me as minhas armas, lápis e caderno, e aprendi a ser cruel. E foi assim que comecei a escrever.

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