Incidente em Antares e o Coronelismo

por Caroline Stampone

Ficção que traz à tona verdades tão brasileiras. Verdades cujos restos ainda nos assombram. Em Incidente em Antares Érico Veríssimo desenterra esqueletos da história brasileira, como o coronelismo dos primeiros tempos, que, apesar de moribundo, ainda sobrevive em tantas cantos menos iluminados do mundo. Cantos onde a liberdade nunca pode ser palavra inteira. 
Érico Veríssimo desnuda com maestria o coronelismo ainda hoje intrincado nas estruturas do Brasil. Coronelismo que desenhou as possibilidades do novo mundo por tanto tempo, e que ainda limita a vida de tanta gente.
Em Incidente em Antares o coronelismo narrado fala dos tempos em que os coronéis dinossauros ainda dominavam o novo mundo, magnânimos e com a benção de deus e do imperador. Dá-se a queda do imperador e o coronel sobrevive. Acontece a Guerra dos Farrapos, a abolição da escravatura, a proclamação da República, a guerra entre Brasil e Paraguai, e os coronéis sobrevivem, ainda mais fortes. Guerras mundiais e a chegada da tecnologia, e os coronéis ainda de pé, como se fossem parte indispensável da paisagem. 
Durante muito tempo não há político profissional que se preze que tente lançar carreira sem o apoio dos coronéis. Inclusive Getúlio Vargas fará uma visita à Antares, para conquistar o apoio dos dois coronéis donos da cidade. Os quais irão lhe dizer sim, e irão garantir que as atas da eleição sejam bem falsificadas, de modo que "todos os defuntos do cemitério local votassem no seu candidato". 
Mas, voltemos ao começo para entender bem essa história, que mal podia começar assim: era uma vez o dono de uma cidade. Seu nome: Francisco Vacariano. Um fã convicto do imperador, que, certa vez, após a a proclamação da República, chegou a resmungar chateado: "um imperador é uma espécie de pai que a gente tem. Numa república parece que todo mundo fica órfão". 
Órfãos, até pode ser. Mas, sem um dono, nunca. Em Antares, desde quando ainda era conhecida como o Povinho da Caverna, todos os órfãos tiveram o coronel Vacariano para temer, e, consequentemente obedecer. Homem "agressivo, opinático e autoritário. (...) suas palavras em geral soavam como chicotadas". Foi ele quem mandou e desmandou em Antares durante muitos anos. Chegando até mesmo a mudar o nome da cidade depois da visita de um estudioso, que contou-lhe que Antares era o nome de uma estrela, maior do que o sol.   O coronel achou o nome apropriado, porque apesar de ser o que o tal estudioso dizia, soava como o nome dum lugar onde existem muitas antas. 
Os Vacarianos foram os donos absolutos de Antares durante décadas. Até que um dia, chega à cidade o clã dos Campolargos, outra família abastada e com as costas quentes, que logo apresentou-se como concorrente dos Vacarianos para a ocupação do posto de proprietários magnânimos da cidade e de todas as almas que nela habitassem. 
Ao contrário de Chico Vacariano o maioral dos Campolargos é um homem que conquista não apenas na bala, mas também na conversa. "(...) sinuoso e macio, cultivava o murmúrio, sabia manipular suas emoções e modular o tom de voz de acordo com a sua conveniência e os seus propósitos. Tinha um ar paternal, frequentemente chamava o interlocutor de 'meu filho', se estava diante dum jovem, ou de 'meu chefe', se falava com um ancião".
A guerra entre os clãs é sangrenta e sem espaço para os direitos humanos. Um dos machos do clã vacariano é sangrado como um porco. O clã responde com a tortura de um Campolargo em praça pública. Assim que têm a chance os Campolargos fazem questão de tirar a macheza de um Vacariano, o que é feito espetáculo público, suportável somente para os que têm estomago forte.  
Enfim, o "ódio a primeira vista" que marcou o primeiro encontro entre Chico Vacariano e o maioral dos Campolargos arrastou-se por sete décadas, através de seus descendentes. Até que deu-se o que toda a população de Antares julgava impossível: Vacarianos e Campolargos fizeram as pazes, em nome de um bem maior. Levar o Rio Grande do Sul ao poder. Aliás, já passava da hora de por fim aquela pouca vergonha de governo café com leite. 
O responsável pelo apertar de mãos dos inimigos foi nada mais nada menos que Getúlio Vargas. Sobre o qual falaremos no próximo post. 
Ao longo dos anos Vacarianos e Campolargos foram tendo que se adaptar às mudanças. Telefone, luz elétrica, comunistas para odiar, ditadores para consertar as coisas. Mas, ao fim e ao cabo, acabaram por encontrar modo de manter seus privilégios. Mamar nas tetas do governo, garantindo que só fossem eleitos prefeitos que aceitassem servir antes de mais e acima de tudo aos interesses dos coronéis. Mandar e desmandar, fazendo uso do revolver ou da influencia, de acordo com as preferencias do momento foi um hábito cultivado pelos Vacarianos até o fim dos dias. 
Pena que ainda seja hábito de gente viva solta por aí. Certa de que a manutenção de seus privilégios versa acima e antes de tudo, até mesmo da liberdade. 

Incidente em Antares de Érico Veríssimo está disponível para download e leitura em http://www.igtf.rs.gov.br/wp-content/uploads/2012/04/ERICO_incidente_em_antares.pdf
um abraço e inté a próxima

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