o fantasma da casa

por Carol Stampone

Toda casa tem um fantasma e todo fantasma tem algo a dizer. 
Na casa onde eu nasci o fantasma era o vô. Um fantasma que sabia tudinho sobre culpa. 
Um fantasma pesado. Carregado por todos nós. É que segundo a mãe, uma família tinha que fazer tudo, tudinho mesmo, reunida. Comer, sair, rir, chorar e até sentir culpa.
A culpa grudou-se à mala da mãe de um jeito doído. Sem dó nem piedade, a culpa ocupou-se de amargar, encurvar e endurecer a mãe.
Sem saber, e quem sabe, talvez até sem querer, a mãe dividiu comigo a tal culpa, pesada que só, antes mesmo de eu saber dizer uma palavrinha sequer.
O mais complicado dessa coisa de já nascer carregando um fantasma é a dificuldade futura de saber onde é que as obsessões do fantasma terminam e as verdades da vida começam. 
Os fantasmas cultivados, adorados e mimados, viram santos. Esquece-se todas as porradas que deram pela vida adentro. Esquece-se todos os que ele fez sangrar. Ignora-se tudo o que ele não sabia. 
Fantasma cultivado dia sim e dia também vira profeta. Carregador das verdades todas. Feriado vira dia de visitar o fantasma. A gente aprende cedo que só se pode dizer coisas boas a respeito do fantasma. Para tanto, a gente engole um monte de urgências nossas, que mal digeridas, vão entalar num quarto escuro qualquer, no fundo da gente. 
Quem vive uma vida inteira a idolatrar o fantasma da casa perde a chance de abraçar o mundo e mais do que isso, de abraçar a si mesmo. 
A culpa que o fantasma jogou encima da gente fez da minha família uma bagunça danada. Durante muito tempo a gente não conseguiu ter uma conversinha sequer que fosse fruto de racionalidade. Tudo o que a gente trocava era marcado pela tal culpa. Até que um dia, a minha irmã mais nova, por coragem ou desespero, gritou bem alto na cara do nosso fantasma de estimação: 
_ Vai embora fantasma! 
Acredita que ele foi. A casa ficou vazia sem ele. Foi esquisito, no começo. Mas a gente está começando a aprender como usar todo o espaço que de repente passou a existir na casa e na gente. É um espaço leve e colorido, ideal para a vida. 

um abraço e inté a próxima

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