sobro em mim
como
se tivesse metido uma cara sobre a outra
como
se tivessem me vestido o vestido da desconhecida
como
se usasse a peruca do rei e as calças do palhaço
obro
em mim
sobro
em mim
como
se carregasse inúmeras gavetas roubadas
vazias
oro
em mim
como
se não soubesse andar
sobro
em mim
como
se a casa nunca tivesse sido minha
perco-me
entre os quartos
e
a noite nunca encontro a cozinha
sumo
em mim
como
se fosse a luz já fraca
ainda
ali, esquecida no jardim do vizinho
cobro
em mim
como
se fosse uma boneca inflável
que caridosas pernas levaram para tomar
ar
sobro
em mim
como
se carregasse nos bolsos
as bocas de minha mãe e de minha tia
a
gritar que o relógio da igreja está atrasado.
O
relógio de deus está atrasado!
fujo,
são
em mim
em
mim
soco
como
se fosse o disco
a repetir a melhor canção da década passada
obro em mim
obro em mim
como
se tivesse adormecido
o sono de cinco gerações futuras de
bebês gorduchos e rosados
bebês gorduchos e rosados
sonho
em mim
como
se houvesse uma voz calada
a cantarolar na roda gigante de meu nariz
sonho em mim
como
se um dia eu tivesse existido
como
se tivesse existido um dia para gritar aquele
'Não aceitamos mais!'.
sobro
em mim
como
se um dia tivesse acreditado na felicidade
como
se tivesse passado
as últimas semanas a alimentar-me de pão e vinho
e liberdade
sono
em mim
em
mim
como
se tivesse metido o amor em um sapato
sobro
e soco
como
se tivesse decorado a sala do vizinho
com
os restos do meu funeral
como
se fosse capaz de dizer simplesmente 'muito obrigado'
primeiro,
em uma uma terça feira triste, cheia de ressaca
depois
em outro dia feira
sumo
em mim
e
o carteiro não acha a casa que sou.
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