Os amantes do café Flore: Beauvoir e Sartre


Um filme que traz até nós as contradições de uma mulher, que pensou, amou e lutou pelo o seu espaço no mundo.
Quando assisti 'Os amantes do café Flore: Beauvoir e Sartre', fui atingida com muito mais verdade por aquela que vem primeiro: Simone de Beauvoir.
Ela é a primeira a aparecer no filme e é também a última a ser mencionada. O foco do filme é ela.
Enquanto Sartre é exposto quase sempre como o possuidor de certezas, ela é exposta como um ser humano que duvida, um ser humano que é mulher e é também outra mulher. Uma mulher parida por seus pais, pelo seu tempo e pela sociedade. E também uma outra mulher, uma mulher que tenta refazer a si mesma.
Uma mulher que pensa e ama. Uma mulher que, tem horas, encontra lugares impossíveis, lugares nos quais ela tenta fazer caber o amor e a si mesma. Uma mulher que por carregar também a outra mulher, teve dificuldades em amar com liberdade. Uma mulher que apesar de recusar o casamento como mais uma das instituições burguesas a qual não queria se ligar_ e assim se anular em sua jaula dourada_ teve dúvidas sobre render-se ou não a um amor exclusivo.
Depois de mais uma das decepções que teve com Sarte e consigo mesma, mais uma das decepções paridas pelo amor de cunho possessivo, Simone desabafa com sua mãe: "Achava que sabia de tudo e me sinto enganada, carente, rejeitada, como todas as mulheres". Continua ela, enquanto reflete sobre a sua relação com Sartre, que naquele momento passa por uma crise: "para não ser como os burgueses aceitei tudo". 
Simone aceitou uma relação baseada na liberdade e na verdade. O pacto que Sartre sugere a ela é um pacto onde seriam permitidos outros, outras aventuras amorosas. O importante é que eles se contassem tudo. Mais tarde, quando refletem sobre as dificuldades de tal pacto, confessam terem se esquecido de considerar os outros, esqueceram-se de considerar os sentimentos dos outros. Além disso, nem sempre a verdade encontrou lugar e hora entre eles. 
O filme deixa bem claro o papel que a exposição do casal existencialista, Simone e Sartre, teve na manutenção de uma certa farsa. Uma farsa nascida da omissão. Os jornais falavam do existencialismo e do amor livre de seus idealizadores de forma parcial. Não houve espaço para a exposição das contradições, das crises, das dúvidas. Tanto Sartre quanto Simone se apaixonaram por outros.
Apesar da mídia ter dado tanta atenção ao 'casal' existencialita, o que realmente conta é a união intelectual desses dois seres pensantes, os quais se desafiaram e abriram portas e janelas um para o outro. 


Simone não começa a sua trajetória pessoal ou intelectual como feminista. Ela faz-se feminista pelo caminho.
O filme mostra muitos pedaços de Simone de Beauvoir que irritariam o feminismo. Pedaços muito comuns em nós, mulheres feitas de carne, osso, projetos e preconceitos_ cultivados em nós desde que fomos geradas, e repetidos por todos os lados.  Por exemplo, numa das cenas ainda bem no começo do filme, Simone está sentada entre os rapazes e diz não gostar da companhia de mulheres. Numa outra cena ela diz que não é lésbica, porque lésbicas são aquelas que 'odeiam os homens e dormem apenas com mulheres'.
Enfim, o filme expõe uma Simone de Beauvoir humana, uma mulher com falhas. Uma mulher que viveu um processo, que traçou um caminho, um caminho pensante, onde a mulher acabou por apresentar-se como questão filosófica.


O encontro entre Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre é que traça as linhas dessa narrativa cinematográfica. Tal encontro veio dar cores e forma a muitas das obsessões e das insatisfações de Simone.
Mesmo antes de tal encontro ela já se mostra crítica ao que a sociedade espera da mulher. Como o pai dela costumava dizer, e a sua mãe costumava repetir: "uma mulher é o que o marido faz dela".
Simone nunca quis ser feita por marido nenhum. Quis fazer a si mesma. No processo dessa re-criação de si, encontra Sartre. De algum modo juntos eles ocupam-se da criação do que ficou chamado de existencialismo.
O existencialismo diz aos homens que a única esperança está em suas ações. Estamos sós e sem desculpas. 
O existencialismo ainda hoje é muito mais associado a Sartre do que a Simone. Ela ainda é vista como uma espécie de primeira dama do existencialismo. Apesar de ter insistido mais tarde que o existencialismo não dá conta de definir a ela ou ao seu pensamento.
O filme mostra o começo dessa tomada de posição de Simone, quando mostra-a insinuando que o existencialismo não dá conta da liberdade das mulheres.


Algumas frases do filme que me alcançaram com mais força:
quando Sartre diz à Simone "Sacuda-se ou vai se tornar uma senhora". 
quando Simone diz à sua mãe: "Cheira a água sanitária até no modo de pensar" (...) "Foi domesticada como um animal. Mas você é de carne e fogo". 
quando Simone diz à Nelson: "A condição dos negros e a condição das mulheres não é tão diferente. Inclusive invocam a natureza para justificar a nossa inferioridade".
quando Simone diz à Sartre: "As palavras são pistolas carregadas, você me disse. (...) No lugar de ser um resistente que escreve, seja um escritor que resiste". 

O filme pode ser assitido, com legendas em português em: http://filosofiaemvideo.com.br/filme-os-amantes-do-cafe-flores-legendado-portugues/

um abraço e inté a próxima, 

Comments

  1. Um filme imperdível. Apaixonante história de duas personalidades fortes que se vê saborosamente.

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