Posts

Showing posts from November, 2014

um começo do eu e da escrita

Image
Começos são sempre coisas inventadas. Invento um começo meu. O começo do eu e da escrita. Um começo que esbarra na minha descoberta do poder. Foi quando tomei consciência de que escrevia, que aprendi o significado do poder e do estatus. Era uma vez uma menina de dez anos que cabia perfeitamente no estereótipo da aluna a ser zoada_ ou segundo o vocabulário atual_ tratava-se de uma vítima ideal de bullyng. Essa era eu. Óculos, aparelho nos dentes, mais alta do que todos os outros, andar desengonçado. Sempre que falava cuspia, porque o aparelho móvel insistia em não caber na boca. Enfim, material inesgotável para a crueldade das crianças. Tudo sugeria que era isso o que aconteceria. Episódios incontáveis de bullyng até a hora de crescer e fingir-se livre. No entanto, deu-se  caso de acontecer o improvável. Tudo começou  com a decisão de uma das professoras. Ela decidiu que sexta feira seria o dia das redações. Nós, os alunos, deveríamos escrever em casa e gastaríamos as ho

o desaparecimento do meu menino

Image
por Caroline Stampone O que eu não entendo é porque ele foi se meter com essa porcaria. Depois que começou a usar essas pedrinhas ele foi deixando de ser ele mesmo, aos pouquinhos foi desaparecendo com o meu menino. Quando me perguntam o porque, eu não sei muito bem o que dizer. Nas notícias dizem que é culpa da família. "Famílias desestruturadas e ausentes" é o que eles dizem. Eu não acho que seja o nosso caso. A gente nunca teve muito, mas a gente sempre deu atenção para o nosso menino. Aqui em casa ele era o único a ganhar uma muda de roupa nova todos os anos. A gente se desdobrava em mil para comprar os livros novos e até dava um trocadinho para ele, uma vez por mês, para ele poder dar uma voltinha no domingo com os amigos. Ele dizia que o dinheiro era para comer um lanche, tomar um refrigerante. Acho que em algum momento virou dinheiro para comprar as pedrinhas do demo. Eu desconfiei que tinha algo errado quando ele parou de me olhar nos olhos. Tive certeza qu

Quis dizer: cela para visitantes

Image
por Caroline Stampone  Quando puxa pela memória o menino depara com muitas coisas que queria esquecer. As visitas ao presídio. A cela para visitantes. De um lado a terrorista, do outro, os próximos. Ambos deveriam ser punidos. A vó foi punida. Ele também. De diferentes modos. Do outro lado da cela era difícil enxergar a mãe. É que ela já tinha sido engolida pela terrorista. Quase completamente. "Para visitar aquela outra eu estava dentro de uma cela. Não era uma sala para visitas. Uma cela para visitantes, cortada ao meio. De um lado a presa perigo máximo, do outro, os próximos, perigo máximo também. Eu não demorei para entender que eu era um próximo perigo máximo. O que eu não sabia responder era de quem eu era próximo. Sentia-me tão absurdamente sozinho que não pude deixar de perguntar quem era aquela mulher do outro lado da cela. Eu não a conhecia. Conhecia?  (...)  Olhei para ela. Faltavam os dentes. A ausência de metade do peso do corpo dela. Os cabelos tinham sid

o valor da gente?

Image
por Caroline Stampone Eu não sou ninguém, seu moço, não tenho dinheiro no banco não tenho sobrenome comprido não tenho diploma pendurado na parede não tenho lugar na sociedade nem no clube da cidade que já pertenceu aos quatrocentões e agora é coisa de novo rico não pude pagar por uma consulta particular no médico muito menos por  uma escola particular para o meu filho Acreditei durante muito tempo que dinheiro não é o que define uma pessoa só um amontoado de papel que compra coisas, certo? Acabei por descobrir que não não nesse sistema não nessa cidade dinheiro compra direitos até mesmo o direito de sobreviver Despossuída carreguei-o nos braços esperei horas na fila do pronto socorro por fim, um médico apressado e de nariz empinado apareceu mal olhou para a gente foi logo dizendo que não era nada grave o que na verdade significava que não tínhamos dinheiro suficiente para comprar o direito de receber tratamento ali eu ainda tentei insistir disse que a feb

Goodbye on a sunny day

Image
by Caroline Stampone She: _ It is dark in here. He: _ It is midday. The sun is shining... She: _ I am not talking about what we can see. Here is not my place. He: _ I like sunny days. After a good beer and you, of course, the sunny days are my favorite thing. I really like the beach as well. She: _ I miss home, the smell of the earth after the rain. He: _ Do you remember when we met? It was a sunny day as well. You were so beautiful. The most beautiful thing that I ever saw. She: _ I miss the smell of fresh fish in the oven... He: _ Sometimes I miss your smile. When we met you used to smile all the time. She: _ I miss the stars, my stars. In the other side of the world, in my piece of the world the stars are different, you know? He: _ But even when you cry there is beauty in your face and in your hands. I love your hands so much. She: _ I miss my language, that I know that it is not mine. I am hers. I can feel at home in my language. There are so many  things

ela sabia dançar com a vida

Image
Outro dia me perguntaram como é que tudo tinha começado entre nós. Eu percebi que era uma provocação. Outra dessas passiva agressivas. Nesse caso passiva agressiva religiosa. Dessas que começam devagarzinho e esperam o momento oportuno para repetir o velho: _ Posso ver que você é uma boa menina. Venha comigo e vou salvar a tua alma. Ao contrário das outras vezes daquela vez não esperneei. Não mandei  que a senhorinha fosse cuidar da própria vida nem repeti o rosário inteiro da libertação sexual ou dos direitos dos homossexuais. Simplesmente contei a nossa história. O nosso começo foi assim. Ela não perguntou-me o nome, nem a idade, nem de onde vinha. Não quis falar sobre o tempo e muito menos sobre diplomas esquecidos em gavetas. Não fez cerimônias e nem discurso egocêntrico. Soube dançar com o tempo. Logo no início deu-me um sorriso, nem muito grande, nem muito pequeno. Acho que foi a medida certa do sorriso dela que me fez ficar. Depois é que reparei nos sapatos sujos de

verdades de casa de banho

Image
_ Há verdades que só podem ser ditas na casa de banho. Era isso mesmo que ela costumava repetir, antes de perder o prumo. Com o tempo passamos a chamar aquilo de 'crise'. E as crises grudaram-se as nossas vidas dia sim e dia também.  Eu nunca levei aquele anúncio a sério. A verdade é que nunca tinha escutado-o de fato.  Era só mais uma das coisas que ela dizia quando não era ela mesma.  _ Há verdades que só podem ser ditas na casa de banho.  por Caroline Stampone Antes de partir ela disse a sua verdade. Deixou-a estampada numa casa de banho caótica e imunda. Escreveu em letras miúdas, no canto esquerdo da parede.  Não reivindicou uma casa de banho só sua. Quis um lugar público. Ou talvez tenha sido só por questão de hábito social. As pessoas escrevem em casas de banho de bares, escolas, bibliotecas, repúblicas, mas quase ninguém escreve nas paredes da casa de banho da sua casa própria.  Acho que esse hábito social tem a ver com um certo anonimato que é intri