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Showing posts from April, 2016

livre por um instante

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Uma vida tinha acabado. A seguinte não tinha começado. Ainda. Era aquele momento mágico, irreal até, em que a liberdade que não cabe no mundo_ só nos sonhos e nas lutas por eles movidas_ habita uma pessoa. Ela foi ocupada e dançou.  Já não haveria mais sinhazinha para obedecer nem senhor para meter-se dentro das saias que cobriam-lhe o corpo, mas não eram dela. Nos dias por vir, ela teria nada, como sempre. Mas, pela primeira vez, ia ser dona de si mesma.  Ela decidiu dançar a noite interinha. Dançava em volta da fogueira, os pés descalços, os olhos fechados, o corpo livre e a alma imensa. A dança era a luta dela, o jeito de afastar por um tiquinho de vida a dura verdade que ela sabia, ia alcançá-la logo.  Ela dançou para esquecer que tinha nascido e existido coisa de outrem, por tanto tempo. Dançou para calar a dor dos estupros, das chicotadas, a dor de ver o seu menino arrancado dela e vendido como um boi. Mas, mais do que isso, dançou para afastar para amanhã uma dura ve

a maldita

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a maldita não foi-lhe apresentada mal entendida, mal explicada mal colocada jogada ali, na periferia do mundo,  no escuro não alcançou os corpos que habitam o centro do mundo e sem saber porquê  gastam existências inteiras a repetir os velhos passos  desenhados, ensaiados e vigiados  pelo dito homem de bem. 

Eu também não quero uma polícia papel higiênico!

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Por conta de um comentário feito à minha crônica 'bandido bom é bandido morto?', que quem não leu pode ler  aqui , acabei cruzando com um vídeo em que o ex policial militar Conte Lopes defende que sim, que bandido bom é bandido morto.  Disse o comentador anônimo:  " Bandido morto não rouba, não mata, não trafica, não estupra, não molesta, não aplica golpes. https://www.youtube.com/watch?v=qm6R3-GxSQo Tá por fora da realidade hein Carol, a década de 60 já passou minha filha, estamos em 2016 e não 1966." Sim, de fato, estamos em 2016, no entanto, a verdade é que tem horas que é fácil ficar na dúvida. Afinal, a mesma lógica abusiva, cruel e injusta que servia à polícia dos ditadores, ainda hoje, serve à polícia que acha que tudo pode e que não tem que responder por nada. No vídeo anexado pelo comentador anônimo, o capitão Conte Lopes aparece a reclamar que hoje a polícia não pode mais fazer o seu trabalho porque o secretário de segurança e os demais po

a esperança vai ser sempre verde

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juntou as mãos, fechou os olhos, deixou que os joelhos arrastassem-na até aquela estátua antiga, rececentemente restaurada. o sol quente, o meio do dia infernal, apesar de tudo, ela não se levantou, não bebeu água, nem comeu. tinha prometido passar três dias ali, ajoelhada, rezando, implorando para que a felicidade chegasse.  antes do começo daquela experiência masoquista, ela não tinha parado para pensar nas roupas molhadas com os restos que seu corpo foi forçado a expelir. suja, exausta e cheirando mal ela teve certeza que era a última das criaturas. apesar disso, acreditou na existência Dele, aquele que tudo sabe e tudo pode. aquele que ama e pune e recompensa.  ela me confundia. tinha horas em que dizia que eu tinha que aceitá-lo porque ele me amava. noutras horas insistia que se eu não tivesse a inteligência de enxergá-lo eu ia pagar o preço, ia apodrecer no inferno. tinha dias em que ela dizia que esperava que ele pudesse me perdoar. todos os dias, quando eu saia de

nem pessimismo, nem otimismo

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foto de Carol Stampone arte de rua, Bergen, Noruega, 2015 "A essência da pessoa não muda, mas se deteriora" Será? Será que estamos nesse mundo para gastar quem somos? Gastar-nos até o talo e daí acabar? Mas, não nos disseram que era para ser o contrário? Estamos aqui para evoluir, para aprender, para amadurecer. Não é isso? Disseram que era. Eu sobrei pensando na fruta madura. O que é que acontece com ela? Pensem na fruta madura. O que acontece depois que ela amadurece? O que é que lhe resta? Alguns dizem que acabar. Tudo o que lhe resta é acabar. Outros acreditam na transformação. O apodrecer é só uma etapa do virar outra coisa. E quantas não são as frutas maduras que são comidas. nem pessimismo, nem otimismo "imediato, urgente, definitivo a vida a gente faz a cada dia"

Outra vez o documentário '15 Filhos'

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Já escrevi aqui no blog sobre o urgente e afiado documentário '15 Filhos' de Maria Oliveira e Marta Nehring. Quem quiser pode conferir o post  aqui .  Volto a falar sobre esse documentário porque as vozes daquel@s filhos e filhas ficaram aqui dentro de mim, me lembrando que a gente não deve esquecer os estragos da ditadura. É uma obrigação nossa rever a história oficial. Cada vez que um dos filhos e filhas abrem-se, para lembrar da infância atravessada pela ditadura, não tem como deixar de ver a dor que carregam e vão sempre carregar consigo. A dor de quem está  para sempre atravessado por uma cicatriz inapagável. A dor de quem traz na pele, na história do corpo, das memórias e do espírito a injustiça tamanha que é uma ditadura. Ditaduras quebram, calam, desumanizam e seus estragos podem atravessar gerações.  Em 15 Filhos uma das filhas diz: "Tanto na França quanto no Chile eu tinha a minha identidade. Eu era a Marta, a filha de um guerrilheiro morto". I

aprender saudades

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Divido um trecho do livro no qual estou trabalhando no momento, que acho que vou acabar chamando  'O filho da mãe ou o filho da terrorista'. Comecei a trabalhar nesse projeto já faz tempo. Primeiro chamei-o de 'Quis dizer'. Já contei um pouquinho dessa história em posts anteriores.  É uma história dura. Ficção que fala de verdades. A história de um menino que teve que crescer cedo demais e que teve a sua vida atravessada por uma ditadura. Quem quiser saber mais a respeito dessa história pode conferir aqui  ou  aqui . um menino começando a sumir, cedo demais, apesar disso, ele ainda tenta deixar o mundo mais habitável Agora é hora de pensar saudades, poetar saudades, pesar saudades espiando a conversa entre o protagonista dessa história e o sabido João de deus. "Pedi explicações mais uma vez. O João então falou assim: “é bom sentir saudades, sabia?”. Eu sabia não. Que coisa mais sem cabimento. Como é que podia ser bom uma coisa que machuca mais do que peixei

a dor e a alegria

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pessoas pequenas e grandes têm que aprender a existir com a dor tem gente que gasta as horas todas tentando fugir de algo que não tem escapatória a vida nesse mundo não sabe ser coisa sem lágrimas, sem sal, sem dor, sem tristeza mas, a vida não precisa ser só escuro, aperto, falta de lugar e pequenez nos ossos eu demorei muito para entender o que é que o poeta realmente disse quando cantou que 'a tristeza é senhora' demorei para entender a serventia de tantos pessimistas demorei para entender o 'it is ok' que a terapeuta repetiu tantas vezes a tristeza é primeira nesse mundo e pode bem ser_ as chances são grandes_ que ela há de ser a última assim que somos arrancados do útero da outra tão próxima, gritamos, gritamos como quem pede socorro estamos desprotegidos, metidos num mundo cheio de tantas injustiças e monstros tanta gente acaba gastando uma vida inteira encolhido quebrado, despedaçado repetindo versões menores daquele primeiro grito de socorro