Posts

Showing posts from July, 2014

a relativa doçura de depender dos turistas

Image
por Caroline Stampone A mãe carrega o nosso mundo na cabeça, todos os dias. Diz que não devemos reclamar dos turistas, afinal, são eles que garantem o nosso ganha pão.  É verdade, a vida ficou diferente, depois da invasão deles. Menos dura. Ainda sofrida, mas agora há comida na mesa.  Mas e se eles decidirem não aparecer mais? Perguntei à mãe isso mesmo, o que é que a gente faz se os turistas começarem a minguar? A mãe respondeu que era para eu parar de pensar em coisa ruim. Mas, eu não pude.  E se daqui uns anos os turistas acharem lugar mais interessante para gastar seus dólares? E se o Estado não conseguir conter a violência que os turistas podem ver? E se acontece mais uma desgraça natural, dessas que deixa turista com medo?  Tanta coisa podia acontecer. Depender inteiramente dos turistas não era uma estratégia de vida lá muito segura.  Voltei a insistir com a mãe. Disse-lhe assim: 'olha, mãe, a senhora não acha que é perigoso a gente depender completamente do

a vida e a morte dum Zé ninguém

Image
por Caroline Stampone Ele disse que tudo ia ficar bem. Eu sabia que era mentira, mas estava habituada a mentiras sinceras. Além disso, se arrancasse dele o direito de sonhar, o que é que sobrava? As contas a serem pagas no fim do mês? Quando o dinheiro chegava dava vontade de fazer festa. Mas capital para festa é que nunca havia. Não é que ele não trabalhasse. Ele trabalhava e muito. A noite como assistente de faxineiro e durante o dia como servente de pedreiro. Dormia quatro horas entre um trabalho e outro, quando dava. No fim de semana estava sempre fazendo bico de carregador, eletricista, limpador de janela, cabo eleitoral, catador de café, consertador de bicicletas... E ele nunca reclamava. Os olhos dele brilhavam quando ele sonhava com um futuro para o nosso filho. _ O menino ainda há de ser doutor. Sonhava, que se ele continuasse a trabalhar duro, o nosso menino não ia precisar largar a escola para pegar no batente, como tinha acontecido com ele. Primeiro, quand

vida de menina

fecha a boca pega só um pedaço espera a tua vez fecha as pernas ocupa-te com as coisas de menina e vê se não demora a aprender as coisas de panela 'há isso de uma profissão mais bonita do que as outras?' agarra o partido certo sorri para a foto eterna entra na casinha e pendura o teu pedaço de papel na parede!

a hora de subir a montanha

Image
também ela teve que subir a montanha na hora do fim, forçamos ela a deixar o centro do mundo Hoje lembrei de um documentário que assisti na faculdade, muitos anos atrás. Era aula de antropologia e o filme era sobre um povoado em algum lugar distante, dum mundo desconhecido para mim, em que no fim da vida, os velhos costumavam subir uma montanha para morrer. Lembro que na altura fiquei triste e assustada. Pensei com os meus botões: 'quem é que faz uma atrocidade dessas com um ser humano?'.  Hoje descobri que essa montanha também existe aqui.  Não estamos preparados para a velhice. Os nossos velhos não têm lugar na sociedade e nem nas vidas dos seus.  A geração da minha mãezinha, cujos ossos mal aguenta-lhe, ainda sofre o mal de desconhecer completamente o ócio produtivo, ou simplesmente qualquer forma de lazer. O que a mãe fez a vida inteira foi cuidar dos outros. Começou a trabalhar ainda criança. Casou-se ainda era menina. Cuidou do pai, dos filhos, dos netos. Nu

lembrando do que não vivi, mas vivo

Image
por Caroline Stampone Lá em casa ninguém fala dos tempos do ditador. Pol Pot é nome terminantemente proibido. A mãe, que perdeu duas irmãs para a fome, um irmão para o exército mirim do ditador, o pai assassinado e a mãe para um pouco disso tudo, repete: _ já houve tristeza que baste. Agora é hora de seguir em frente, deixar o passado quieto com os mortos. Eu respeito muito a mãe, mas não acho que ela esteja sempre certa. Os nossos mortos, por exemplo, não estão quietos. Eles gritam-me aos ouvidos, noite e dia, que a gente não pode esquecer o que aconteceu. É turista que quer saber como chegar ao memorial às vítimas do genocídio. É a cara da mãe marcada pelas cicatrizes de tanta atrocidade. É o medo que ainda acompanha o andar de tanta gente, gente que ainda não acredita direito que os tempos de seguir uma única ideia começaram a acabar. Gente que acha que ter um punhado de arroz todos os dias é sinônimo de fartura. Gente que só sabe existir sentindo saudades dos que não pu

dia de Maria

Image
por Caroline Stampone  Esperava por um abraço. O dia tinha sido longo. As crianças, o cachorro que ele tinha arranjado, amado por um dia e depois largado pela casa, o café da manhã dele, as cuecas a serem passadas, as garrafas a serem recolhidas, o lanchinho das crianças. Peguei o ônibus e parei na creche, depois corri para o supermercado. Mesmo saindo de casa quando o sol ainda nem tinha dado as caras direito, acabei por chegar atrasada. É que a segunda condução quebrou no meio do caminho, o que me fez perder o terceiro ônibus. Aí não teve jeito, cheguei atrasada. Depois de implorar ao supervisor para que me desculpasse, só dessa vez, e jurar pela alma do meu falecido paizinho, que isso não ia se repetir, ele aceitou não me dar uma advertência, desde que eu pagasse o atraso na minha hora de almoço. Hora de almoço? A verdade é que era luxo quando eu tinha quarenta minutos. Em dia de promoção então. Se eu conseguisse quinze minutos já era razão de festa interna. Mesmo sabendo d