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Showing posts from 2016

a cor do desespero dela

Vermelho. O chão estava coberto de um vermelho vivo e quente. O corpo dela esquecido na cabeceira da mesa, repleto dos pedaços de vidro. Naquela noite ela tinha decidido fazer diferente.  Escolheu desobeder.  Não comeu o que meteram-lhe no prato. Apesar de saber que ela tinha a obrigação de mastigar todos os pedaços e engolir tudinho o que lhe enfiavam no prato e na vida.  Todo o quarto, toda a casa cheirava a podre. O cheiro não vinha do peixe, que era fresco e tinha sido preparado com as últimas cebolas e com dois dentes do alho roubados do pequeno oficial. As batatas, apesar de velhas, tinham sido cozidas com precisão. A cozinheira tinha feito o milagre de encontrar rosmarinho. O vinho era bom e tinha sido larapiado do padre, que por sua vez o tinha surripiado dos bolsos dos pobres quebrados que fingia servir. As toalhas um dia tinham sido brancas. Fazia tempo que tinham passado a existir de outra cor.  A cor da opressão. O cheiro da opressão.  Apesar de tudo, ela era u

Café Society: o novo filme de Woody Allen

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Aviso: Esse post contém spoilers.  Uma história de amor realizada em pedaços, deixada pela metade ou três quartos. E quem é que não conhece a força que pode ganhar dentro de nós a extensão daquilo que não foi, a força (destrutitiva) do que ficou no quase... É esse o clichê que Woody Allen explora em Café Society. Um filme que bem ao seu estilo fala do absurdo da vida, com humor e filosofia de botequim.  Anos 30, Hollywood e Nova York são os lugares em que a história acontece. Primeiro Woody Allen carrega-nos a Hollywood, através de um jovem super ingênuo, que cansado de trabalhar na joalheria do pai vai atrás de algo novo. Bobby (Jesse Eiseberg) acaba encontrando a paixão personificada em Vonnie (Kristen Stewart). Mais tarde, com o coração partido, e sabendo um pouco mais de si e da vida, ele volta a Nova York e mais uma vez desloca-nos com ele.  Uma das provocações miudinhas de Allen é a apresentação de Nova York, com a sua Broadway and cheesecakes, como o lugar em que a boa

A morte do pai parte II: o pai, o filho, o escritor e outros

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Como prometido, hoje volto a falar de 'A morte do pai', o volume I da novela autobiográfica em seis volumes do autor norueguês Karl Ove Knausgaard. Quem ainda não leu as minhas primeiras divagações sobre o assunto pode dar uma espiadinha aqui . Hoje falo menos das minhas obsessões e me aproximo um tiquinho mais das verdades vomitadas pelo autor. Um homem, que um dia foi um menino, um filho, virou um pai, um marido, continuou sendo um irmão, escolheu ocupar o mundo no lugar de um estrangeito, fez-se escritor, depois prometeu que nunca mais iria escrever. Mas, não desesperem-se. Ele mudou de ideia. Quando Knausgaard lembra ele não esconde-se atrás das primaveras da vida. Ele não descreve apenas cheiros bonitos. Interessa-lhe cheiros reais, por mais inapropriados que esses possam ser. Quando ele viaja através da sua própria vida, e divide verdades de memória, ele usa todos os seus pedaços, explora todos os seus papéis. Divide as certezas e dúvidas que marcaram

Doce arte de j.artur

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há quem veja só pedra, mas, a verdade é que ainda há flores que resistem a dureza e acham onde existir Doce arte de J.artur é um texto com cheiro de dia a dia, que acaba por revelar-se uma dupla declaração de amor. A declaração de amor de um amigo à uma amiga e a declaração de amor à doçura, à bondade, à “vida que vale a pena se a alma não é pequena”. J.artur confessa que têm obsessão por gente, pelo o que a gente sente. Segundo a prosa poética dele mesmo: “ eu tenho obsessão pelas pessoas, pelo sentimento - delas, nelas, o que me causam, etc - pela vida alheia que, tal qual o oceano e o céu, apesar de tão distantes, separam-se por uma linha tão tênue, sabe? nós seres humanos somos todos tão parecidos e tão diferentes. (...) não consigo imaginar o que é não sentir nada”. Quando lemos 'Doce arte' encontramos esse ser humano, esse escritor, que decide, a cada palavra escrita, dizer sim à arte, à beleza, aos sentimentos. Decide também dizer não à indiferença. As escolha

a morte do coronel

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Era a primeira missa do ano. Era para ser uma missa para pedir à deus um ano sem miséria e sem violência. Mas, por causa da morte morrida do coronel virou outra coisa. A igreja não estava meio vazia, como sempre. Dessa vez a cidade inteirinha veio. Os que acreditavam em deus e os que desacreditavam também. Tinha gente que estava ali para rezar pelo padrinho. Homem bom e justo, que cuidava dos seus. Outros estavam ali para ter certeza que o diabo do coronel tinha parado de existir mesmo. Para aqueles que não seguiam a cartilha do dono daquelas bandas, aquela morte era uma sementinha de esperança, esperança de que a liberdade ia finalmente florescer naquelas terras. No comprido discurso, o padre, mais um dos aliados do coronel, floreou muita história. Falou de tudo que o coronel tinha construído. Na verdade, ele tinha mandado contruir. Mas o padre falou que ele é que tinha construído mesmo. Como se ele, com as próprias mãos e suor tivesse erguido a igreja, as casas do bairro p

A morte do pai parte I: a death in the family, o bybanen e eu

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A morte do pai é o título do primeiro volume da novela autobiográfica do autor norueguês Karl Ove Knausgaard, que será uma das atrações principais da FLIP 2016. Na tradução em português 'A morte do pai'.  Li 'A morte do pai' nas minhas idas e vindas do Bybanen em Bergen. Bybanen é uma espécie de trenzinho da cidade. O bybanen aqui de Bergen te carrega de Byparken até Lagunen, uma viagem que dura mais ou menos meia hora. Eu meto-me no bybanen quase todos os dias, para ir e voltar do trabalho. Como costumava fazer no metrô de São Paulo, na volta do trabalho_ porque na ida não conseguia nem mover os braços, de tão cheio que o 'trem' estava_ leio. Gastei as minhas últimas viagens lendo a tradução para o inglês desse livro. O título em inglês, 'A death in the family' (uma morte na família) revela bem menos que o título em português. Permito-me divagar mais um pouco. Eu tenho uma certa obsessão pela família. As minhas histórias são repletas de

porque ler um poema por dia

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ler um poema por dia desacelera cria espaço acarinha o corpo e dá-lhe voz para começar a contar o que é que que ele quer e precisa a poesia carrega fantasmas que sabem verdades que a gente acha que já não servem que estão fora de moda mas, que na verdade sao as únicas que servem verdades escudo que a gente tem que meter na frente da gente na hora de encarar os nossos próprios monstros a poesia as vezes lembra-nos que a ética e a política não deviam ser coisas separadas e que o amor e a dor tem horas que só sabem existir grudados a poesia traz até nós o ar da montanha e deixa que ele abra a nossa pele e vernize as palavras e anime o pensamento a poesia não tem preguiça de por o pensamento a dançar não tem vergonha de convidar o coração para dançar junto não mete o corpo no lugar de empregado pelo contrário, convida-o também, para a dança a poesia é como um baile em que todos os nossos pedaços são convidados a existir n

os verbos do fim

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arte de rua, Bergen, 2016. foto de Carol Stampone. 'No começo era o verbo'. E no fim? O verbo outra vez? Mas, com qual verbo o fim começa? Foi? Teve? Queria? Devia? Amou?  No fim sobramos como uma lembrança que habita um outro.  Mas e se durante a vida uma pessoa só tenha sabido contar solidões? Foi criança na hora de ser gente grande, para compensar as horas todas, em que teve que fingir que sabia o que criança nenhuma tem a obrigação de saber. Quis um outro mundo. Gastou pedaços seus engaiolada numa bolha. Fez-se e refez-se lutando batalhas perdidas e abraçando Quixotes. Devia demais a si mesma. Inúmeras promessas, compridas demais para haverem de ser cumpridas. Amou, uma vez, com loucura e sem pisar no freio. Entregou-se e quebrou-se. Levaram-na para o hospital. Mas, ela que sempre considerou hospitais lugares deprimentes, arrastou-se para a casa do cachorro. Deu o último suspiro ali, sem nome. Escreveu por desespero. Uma solidão, duas solidões, trinta

livre por um instante

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Uma vida tinha acabado. A seguinte não tinha começado. Ainda. Era aquele momento mágico, irreal até, em que a liberdade que não cabe no mundo_ só nos sonhos e nas lutas por eles movidas_ habita uma pessoa. Ela foi ocupada e dançou.  Já não haveria mais sinhazinha para obedecer nem senhor para meter-se dentro das saias que cobriam-lhe o corpo, mas não eram dela. Nos dias por vir, ela teria nada, como sempre. Mas, pela primeira vez, ia ser dona de si mesma.  Ela decidiu dançar a noite interinha. Dançava em volta da fogueira, os pés descalços, os olhos fechados, o corpo livre e a alma imensa. A dança era a luta dela, o jeito de afastar por um tiquinho de vida a dura verdade que ela sabia, ia alcançá-la logo.  Ela dançou para esquecer que tinha nascido e existido coisa de outrem, por tanto tempo. Dançou para calar a dor dos estupros, das chicotadas, a dor de ver o seu menino arrancado dela e vendido como um boi. Mas, mais do que isso, dançou para afastar para amanhã uma dura ve

a maldita

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a maldita não foi-lhe apresentada mal entendida, mal explicada mal colocada jogada ali, na periferia do mundo,  no escuro não alcançou os corpos que habitam o centro do mundo e sem saber porquê  gastam existências inteiras a repetir os velhos passos  desenhados, ensaiados e vigiados  pelo dito homem de bem. 

Eu também não quero uma polícia papel higiênico!

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Por conta de um comentário feito à minha crônica 'bandido bom é bandido morto?', que quem não leu pode ler  aqui , acabei cruzando com um vídeo em que o ex policial militar Conte Lopes defende que sim, que bandido bom é bandido morto.  Disse o comentador anônimo:  " Bandido morto não rouba, não mata, não trafica, não estupra, não molesta, não aplica golpes. https://www.youtube.com/watch?v=qm6R3-GxSQo Tá por fora da realidade hein Carol, a década de 60 já passou minha filha, estamos em 2016 e não 1966." Sim, de fato, estamos em 2016, no entanto, a verdade é que tem horas que é fácil ficar na dúvida. Afinal, a mesma lógica abusiva, cruel e injusta que servia à polícia dos ditadores, ainda hoje, serve à polícia que acha que tudo pode e que não tem que responder por nada. No vídeo anexado pelo comentador anônimo, o capitão Conte Lopes aparece a reclamar que hoje a polícia não pode mais fazer o seu trabalho porque o secretário de segurança e os demais po

a esperança vai ser sempre verde

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juntou as mãos, fechou os olhos, deixou que os joelhos arrastassem-na até aquela estátua antiga, rececentemente restaurada. o sol quente, o meio do dia infernal, apesar de tudo, ela não se levantou, não bebeu água, nem comeu. tinha prometido passar três dias ali, ajoelhada, rezando, implorando para que a felicidade chegasse.  antes do começo daquela experiência masoquista, ela não tinha parado para pensar nas roupas molhadas com os restos que seu corpo foi forçado a expelir. suja, exausta e cheirando mal ela teve certeza que era a última das criaturas. apesar disso, acreditou na existência Dele, aquele que tudo sabe e tudo pode. aquele que ama e pune e recompensa.  ela me confundia. tinha horas em que dizia que eu tinha que aceitá-lo porque ele me amava. noutras horas insistia que se eu não tivesse a inteligência de enxergá-lo eu ia pagar o preço, ia apodrecer no inferno. tinha dias em que ela dizia que esperava que ele pudesse me perdoar. todos os dias, quando eu saia de

nem pessimismo, nem otimismo

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foto de Carol Stampone arte de rua, Bergen, Noruega, 2015 "A essência da pessoa não muda, mas se deteriora" Será? Será que estamos nesse mundo para gastar quem somos? Gastar-nos até o talo e daí acabar? Mas, não nos disseram que era para ser o contrário? Estamos aqui para evoluir, para aprender, para amadurecer. Não é isso? Disseram que era. Eu sobrei pensando na fruta madura. O que é que acontece com ela? Pensem na fruta madura. O que acontece depois que ela amadurece? O que é que lhe resta? Alguns dizem que acabar. Tudo o que lhe resta é acabar. Outros acreditam na transformação. O apodrecer é só uma etapa do virar outra coisa. E quantas não são as frutas maduras que são comidas. nem pessimismo, nem otimismo "imediato, urgente, definitivo a vida a gente faz a cada dia"

Outra vez o documentário '15 Filhos'

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Já escrevi aqui no blog sobre o urgente e afiado documentário '15 Filhos' de Maria Oliveira e Marta Nehring. Quem quiser pode conferir o post  aqui .  Volto a falar sobre esse documentário porque as vozes daquel@s filhos e filhas ficaram aqui dentro de mim, me lembrando que a gente não deve esquecer os estragos da ditadura. É uma obrigação nossa rever a história oficial. Cada vez que um dos filhos e filhas abrem-se, para lembrar da infância atravessada pela ditadura, não tem como deixar de ver a dor que carregam e vão sempre carregar consigo. A dor de quem está  para sempre atravessado por uma cicatriz inapagável. A dor de quem traz na pele, na história do corpo, das memórias e do espírito a injustiça tamanha que é uma ditadura. Ditaduras quebram, calam, desumanizam e seus estragos podem atravessar gerações.  Em 15 Filhos uma das filhas diz: "Tanto na França quanto no Chile eu tinha a minha identidade. Eu era a Marta, a filha de um guerrilheiro morto". I