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Showing posts from 2013

Memórias pesadas e urgentes

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Alguns tentaram convencer à si mesmos, repetiam aos outros que existiam para defender à nação e as pessoas de bem. Julgavam saber que terrorista não era gente. Comunista tinha que ser eliminado. E essa lenga lenga de direitos humanos só punha a pátria em risco. "Essas pragas podem disfarçar-se de tudo, até mesmo de mulher grávida.". É o que repetiam para si mesmos. De certo para ter estômago para continuar quebrando gente, dia após dia. Os torturadores, servidores do Estado, queriam acreditar que eram apenas homens de bem fazendo o seu trabalho.  A verdade é que não pouparam nem mesmo as mulheres grávidas da tortura. Ameaçaram torturar seus recém nascidos. Causaram abortos, consequêcia de choques elétricos e ameaça de estupro.  "Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei" (Izabel Fávero em Direito à memória e à verdade: Luta substantivo feminino ).  Nos

Outro conto

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por Caroline Stampone A casa ou Quando o homem das cabras sumiu é outro dos meus contos de gaveta. Nasceu dum exercício de escrita bem simples. Era assim: "Leia a poesia a seguir e depois escreva um texto em prosa.". Sugerido pela mesma editora e pessoa de impossibilidades, antes aqui já mencionada.  A poesia inspiradora foi A casa de Paulo José Miranda. Parte do livro A voz que nos trai . Trata-se de uma longa poesia que deixa um cheiro de saudade pesada, faltança mesmo. Saudades de uma outra vida, talvez. Contada por um resto metido numa casa de campo. Casa que alimenta-se de vida e não se interessa por morte. Casa onde há um vaso, amoreiras e cogumelos.  Um dos trechos da poesia de Paulo José Miranda que me atingiu mais fundo foi: "O silêncio, de quando em quando, ilumina a casa". Achei uma imagem bonita e forte. Deixei-a confabular com a minha velha obsessão. Deixei com que outros pedaços da poesia ganhassem espaço dentro do quarto da escritor

Porque um escritor deve ter um diário segundo Virgínia Woolf

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por Caroline Stampone Virg ínia Woolf não somente escreveu um diário. Ela também refletiu sobre a relevância duma escritora ter um diário.  Defendeu ela que o hábito de escrever um diário acaba por ser uma boa maneira de praticar a arte da escrita. Argumenta que tal prática é bastante válida não apenas por razões qunatitativas. Ou seja, o argumento de Virgínia Woolf não é simplesmente: quanto mais se escreve, melhor se escreve.  A autora valoriza o exercício de escrita de ocupar-se diariamente dum diário devido ao fato de que o processo de escrita em questão é de outra natureza. Ou seja, não escreve-se um diário com a mesma precisão e disciplina necessária para escrever um ensaio ou uma novela. O diário é um exercício de escrita mais livre, o que cria espaço para a descoberta de aspectos do idioma do escritor que talvez ele não tenha tido a chance de perceber antes.  Quando lança os olhos para o seus diários Virgínia Woolf confessa que seu primeiro impulso é sentir uma e

Um conto: Silêncio de dois

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Silêncio de dois   é um dos meus contos de gaveta. Fala do envelhecer, de encontros e desencontros, enfim, duma humanidade que para ser completa precisa ser capaz de quereres. Protagonizado por uma mulher velha, que passou a vida inteira a aceitar tudo o que lhe era oferecido e que acabou por aceitar também o peda ço de taça que o marido estendeu-lhe, num último momento.  Silêncio de dois  é uma história pesada e atravessada pelo absurdo. Um absurdo que vem a tona para desnudar as muitas faltan ças duma vida esquecida na repetição e na rotina. A  vida de alguém que já não sabe mais querer.  Silêncio de dois fala de dois silêncios, um que sabe dar espa ço e até mesmo unir pessoas. O outro, pesado, só distancia, isola e cria desconhecimento.  Silêncio de dois come ça assim: " A taça caiu, espatifou-se em minúsculos pedaços. Ele não pôde contar. Agarrou um e desenhou uma pequena flor, na pele. Era vermelha. Sorria-me. Não disse palavra. Ofereceu-me o punhado da taça e leva

sabia que deus anda doente de morte?

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por Caroline Stampone  _ Mas, por que padre? _ Natalina, a menina acabou de parar a missa para perguntar por que ao padre  ou sou eu que tô vendo coisa? Natalina esclareceu à Maria Amélia, mais conhecida como Dona Mélinha, que ela estava boa das ideias. O absurdo tinha mesmo ocorrido. E a menina não tinha nem mesmo tido o respeito de chamar o padre de senhor. _ O mundo está perdido! _ Se não está_ respondeu Natalina. Para surpresa das beatas e das ovelhas todas o padre quebrou o cerimonial e respondeu a pergunta da menina. Usou o velho 'porque são assim que as coisas são'. Seguido do 'está provado e registrado no livro sagrado'. A menina quis saber o que garantia que a bíblia era uma prova incontestável. Aquilo dependia da crendice de tanta gente. E se a Bíblia fosse só mais um livro de ficção, como tantos outros? E mesmo se a bíblia fosse um livro de história... isso não era prova de muita coisa. Afinal, a história não acabava por ser sempre a ve

Artaud: um gênio ou um louco?

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Artaud hoje é considerado um gênio, referência para quem quer estudar teatro. No entanto, enquanto vivo, foi rotulado louco. Passou um grande pedaço de vida (ou  seria só morte?) enclausurado em hospícios.  Sua existência e consequentemente sua obra e seu lugar frente ao e no teatro foi marcada pela tênue linha entre a loucura e a dita normalidade. Distinção que para ele não fazia nenhum sentido. Distinção que ele desejou abolir inclusive do teatro. Para Artaud a função do teatro é ajudar o ser humano a (re)encontrar o 'estado poético'.  Mas, afinal  o que é esse ‘estado poético’ que obcecou Artaud durante uma existência inteira?  O 'estado poético' não é algo fundado no racional, nem tampouco no que comumente é aceito como normal. Pelo contrário, o ‘estado poético’ tem suas raízes intrincadas no mito, no símbolo e no rito. O ‘estado poético’ que moveu (e segundo alguns enlouqueceu) Artaud vai muito além do dito ‘normal’. O estado poético existe para despertar aqu

escritores suicidas

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por Caroline Stampone Hemingway confrontou o suicídio durante toda a sua obra. Por fim, resolveu repetir o fim do pai suicida, acabando com um tiro de espingarda. Virginia Woolf foi temida por muitos. No fim matou-se. Encheu os bolsos do casaco de pedras e entrou no rio, sem intenção alguma de nadar. Hunter S. Thompson inventou o jornalismo gonzo e deixou escritas muitas verdades sobre a mal cheirosa sociedade burguesa. Um dia resolveu dar-se nada mais nada menos do que um tiro na cabeça. Desde então, deixou de existir homem de carne e osso.  Sylvia Plath encheu a arte de confissões e o próprio corpo de narcóticos e gás de cozinha. A sua obra inteirinha grita uma inquietação de quem não pode caber nesse mundo. Mário de Sá Carneiro suicidou. Assim como Giles Deleuze, que nos apresentou a esquizofrenia social. Gérard de Nerval enforcou-se num beco em Paris. Camilo Castelo Branco, após contrair neurosífilis resolveu acabar com a própria vida. David Foster Wallace ap

documentário 'Open Arms, Closed Doors' (Braços abertos, Portas Fechadas)

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O documentário 'Opens Arms, Closed Doors' (Braços abertos, Portas Fechadas) fala da vida de Badharo, um imigrante angolano que vive na favela Mare, no Rio de Janeiro. Ele conta que antes de imigrar pensava que ia encontrar o Rio de Janeiro das novelas, uma cidade linda e de braços abertos. No entanto, acabou por encontrar muito preconceito e muitas portas na cara.  Não é que brasileiro não trate bem imigrante.  "Europeus e norte americanos se dão bem aqui", afirma Badharo. Mas, a situação para quem vem de Angola, enfim, para quem vem da África negra é outra.   A cor da pele ainda tem o poder de abrir e fechar portas. Soa absurdo. Mas, é verdade. Muitas vezes o preconceito ao negro caminha de mãos dadas a exclusão do pobre. Mas, segundo o documentário, mesmo os africanos que vem para o Brasil com a carteira cheia sofrem preconceito.  Badharo é um lutador cotidiano, que faz o que ele chama de rap social. Conta que vem de uma família de lutadores. Seu pai e alguns

Quis dizer: quando era uma criança

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por Caroline Stampone Na primeira parte de Quis dizer uma criança tenta falar. Um menino, que tem que deixar de ser criança cedo demais, tenta explicar quem é e como tudo começou. Não é uma missão fácil. Afinal, trata-se do filho da terrorista. Um menino que teve a vida, desde o mais derradeiro início, atravessada por uma ditadura. Quando essa história começa a ser contada ainda há muito que o próprio narrador desconhece, e mais ainda, há muito que ele quer dizer, mas não sabe como ou simplesmente não é capaz de abrir a boca. Por enquanto.  quando era uma criança é o título do primeiro capítulo de Quis dizer . É aqui _ no começo dessa ficção que imita um livro de memórias_ que o narrador inicia uma trajetória doída. É preciso lembrar as circunstâncias. Falar da mãe que foi engolida pela terrorista. Perguntar pelo pai.  Toda a narração é marcada por uma forma de falar fincada na beira da infância.  O que sente-se principalmente nesse primeiro capítulo. Afinal, aqui o narrado

O pau de arara sobreviveu

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por Caroline Stampone  "Memória sem presente e futuro é nostalgia... ou narcisismo" A verdade estampada no documentário '1964 Um golpe contra o Brasil', dirigido por Alípio Freire, chacoalhou o meu mundo essa manhã.  Pois sim, é verdade. É preciso revisitar o passado com os pés no presente, com os olhos abertos, e com cada pedacinho de nós comprometido com a justiça do por vir.  Por isso hoje é dia de falar das injustiças desse segundo. Injustiças ocorridas em periferias do mundo inteiro. Jovens assassinados e desaparecidos é uma verdade de agora. Triste verdade, que ainda não fomos capazes de reescrever.  Como bem coloca Alípio Freire, quando abre a boca para falar de si e dos companheiros de luta:  "Nós sobrevivemos ao pau de arara.  Mas o pau de arara também sobreviveu".  O pau de arara sobrevive quando fechamos os olhos à violência policial. O pau de arara sobrevive quando ignoramos o coronelismo que ainda domina tantas cidades brasi

Nos bastidores de Quis dizer. O caderno de capa azul.

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Uma vez cruzei com uma pessoa impossível, que, por coragem e 'rexistência' insistiu em fazer-se editora. Convidou-me para atravessar o rio e visitar a margem esquerda. Fez-me um montão de perguntas e repetiu incontáveis vezes que um escritor escreve, escreve, escreve... A primeira vez que cruzei com a moça das impossibilidades foi no cenário perfeito: numa casa de impossibilidades, mais especificamente, numa das sobreviventes repúblicas conimbricenses. E como não poderia deixar de ser nessa noite a anfitriã foi a poesia. Leu-se, opinou-se, apreciou-se o silêncio que mora entre as palavras. Num determinado momento foram lidas duas poesias de amor. A das impossibilidades exigiu que todos se pronunciassem. De qual poesia gostas mais? E desde então foi sempre assim. Perguntas e mais perguntas. Do que gosta? Do que não gosta? O que queres? Por que escreveu assim e não assado? Porque não escreves sobre isso? É que gente de impossibilidades é assim. Não tem tempo a perder. Abre a

Nos bastidores de Quis dizer. O começo.

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A novela  Quis dizer  escapuliu-me em dezembro de 2010.  Aproximava-se o aniversário de um bom amigo. Amigo esse que é poeta, apesar de ter tentado fugir dessa verdade.  Quis dizer  foi antes de tudo uma provocação para esse amigo. Um grito. Um pedido para que ele escrevesse, pois é para isso que existe, na minha modesta opinião.  por Caroline Stampone  A obsessão que moveu  Quis dizer  foi a ditadura. Velha conhecida minha. Dessas conhecidas de ouvir dizer, de conviver com os restos.  Em 2010  Quis dizer  escapuliu-me em menos de uma semana. Vomitei imagens no caderno de escrita de capa azul (sobre o qual falarei em outro post). Não lembro se usei caneta azul ou preta. Depois digitei tudo no computador. Fiz uma capa com radiografias e dei de presente para o meu amigo. Na dedicatória confessei que aquela era uma merdinha ainda fresca.  É que naquele momento Quis dizer  não era bem uma história. Não passava de um regurgitar só meu. Era quase incapaz de encontr

Documentário 15 Filhos, uma inspiração

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O documentário 15 Filhos é cru, urgente e atual. Produzido em 1996 e dirigido por Maria Oliveira e Marta Nehring, 15 Filhos não nos deixa esquecer os estragos inapagáveis causados pela ditadura militar brasileira. Durante esse longo período sem justiça, não apenas os guerrilheiros e guerrilheiras foram torturados, presos, assassinados e desaparecidos. Seus próximos e próximas também foram fatalmente atingidos. Nesse documentário 15 seres humanos cujas vidas foram atravessadas pela ditadura militar brasileira comunicam o impossível. Comunicam o peso da injustiça, a cor da dor e o cheiro de pessoas quebradas. Desde muito cedo. by Caroline Stampone Falam dos tempos em que foram crianças (ou quase isso). A dor de nascer clandestino. A dor de crescer clandestino. Dividem momentos que ainda têm um rastro de infância, um resto do modo de falar e de ver o mundo de uma criança. Criança que foi obrigada a deixar de sê-lo, cedo demais. Criança que não entendia porque os pais não po

Quis dizer: a mãe 'sem juízo'

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Quis dizer é ficção. Ficção que fala de verdades. Verdades doídas. Verdades absurdas. Verdades para as quais muitas vezes preferimos fechar os olhos e os ouvidos. Verdades ocorridas num Brasil de outrora. Verdades que ainda atravessam outras terras, algumas distantes, outras ao alcance de poucos passos. Verdades que fundam-se na repetição de velhos abusos e na pregação de perigosas certezas. A repetição dos velhos lugares comuns. Coisas como: 'há quem veio ao mundo para obedecer. E quem saiba comandar'. É que soa menos manipulador 'comandar' ao invés de mandar. A verdade é que aprendemos desde pequenos que 'manda quem pode e obedece quem tem juízo'. E quem não tem juízo? Quem não tem juízo pagará por isso. No melhor dos casos será isolado do rebanho. Haverá também quem terá que pagar com a própria vida. Para outros o preço será a sanidade . Há quem perderá o direito de ser gente. E há quem será transformado em restos. Qual a punição menos doída? Não

Simples assim

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foto de Caroline Stampone  Encontrar outras perspectivas. Olhe outra vez. Abra mais os olhos. Dessa vez, feche os olhos um bocadinho. Olhe com a pele. Esqueça tudo que um dia já soube e deixe os pés olharem por ti. Só dessa vez. Hoje vou perceber o mundo através dos fios de cabelo branco que brotam-me cabeça a fora. Se a adolescente olhasse através da janela suja veria um dia cinza. Motivo de reclamação. A dos cabelos brancos reflete sobre a relevância dos dias cinzas. O ar fresco e gelado que carregam consigo. Enxerga neles parte do equilíbrio de todo o resto. A dos cabelos brancos sabe que não se ganha nada a detestar os dias cinzas. A dos cabelos brancos meteu-se num paradoxo. Tem certeza que arrastar certezas faz-nos pequenos e medíocres. Por isso dança com suas certezas. Dia sim, dia também. No meio do caminho encontra verdades passageiras. Às vezes estopim de encantamento, entusiasmo, paixão. É verdade que há horas em que a frustração faz-se presente, mas, a dos c

Quis dizer: novela em andamento

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Quis dizer é uma novela ainda em andamento. Fruto das obsessões dessa que aqui vos fala.  Há quem acredite que uma história começa a existir quando transforma-se na obsessão de um narrador. Se for esse o caso Quis dizer nasceu em 2003. Nessa altura, estava estudando mais a fundo as atrocidades cometidas pelos ditadores brasileiros. Assisti e li a diversos documentários de ex presos políticos. Gente de carne e osso que tinha sido torturada e massacrada. Gente que tinha assistido aos seus companheiros serem assassinados e desaparecidos. Gente que pensava sobre si mesmo como heróis e heroínas, mas que acabou tendo suas fotografias estampadas em folhetos baratos, abaixo da chamada: "Terrorista procurado". Lembro que um dos depoimentos que mais me marcou foi o da filha de um revolucionário que foi preso e torturado pela ditadura. Quando pergutaram-lhe se ela pensava que o pai tinha sido um herói ela disse que não. Que para ela a mãe tinha sido uma heroína. A mãe tinha