o menino que decidiu parar de falar

'amizade' por Caroline Stampone

_As crianças sabem cicatrizar mais rápido. Daqui a pouco ele esquece. _ foi a mentira que a vó disse à mãe, para tentar acalmá-la. 
Ia fazer três anos que eu tinha parado de falar. A última coisa que pronunciei foi um grito, doído. Antes eu tinha implorado. 
_ Mãe, por favor me ajuda. Diz para eles pararem com isso. Eu prometo que eu vou ser um bom menino. Vou obedecer tudinho a partir de agora, só não deixa eles continuarem, por favor. É a última coisa que eu te peço. 
A mãe não disse nada. Só deixou os braços caírem do lado do corpo, aquele gesto tão dela, para repetir, mais uma vez, que não havia nada que ela pudesse fazer. 
A mãe acabou por existir numa dessas vidas impotentes. Até que a vó, a mãe dela, tinha tentado despertar na mãe um tiquinho de rebeldia. "Uma mulher, para existir nesse mundo de homens, tem que ser versada em rebeldia, minha menina". Mas a mãe, depois do casamento acabou esquecendo as lições da vó. Talvez porque fosse mais fácil. Talvez porque estivesse cansada demais. Rebeldia dá trabalho. 
Depois do casamento a mãe foi parando de fazer decisões. Foi o pai que escolheu a casa. O pai que escolheu o meu nome, a minha escola, a minha religião. No fim das contas, lá em casa, era o pai quem decidia o cardápio do dia e até a roupa e o penteado da mãe. Tudo o que o pai decidia estava bom, estava certo. Depois de um tempo miúdo a mãe desaprendeu a querer. Por último, aprendeu impotência. Já fazia uns anos que a resposta dela era sempre a mesma para tudo: 
_ A gente tem que conversar com o seu pai e ver o que é possível. 
As possibilidades da mãe passaram a ser decididas pelo pai. E as minhas também. 
O pai tinha decidido que era hora de vender a nossa casa e partir para a cidade grande. A vida na vila tinha ficado pequena demais para as ambições dele. Eu não queria ir, mas aceitei. "Menino de calças curtas não tem querer!"_ o pai costumava dizer. 
O pai era um desses homens que ocupa espaço no mundo. Um sujeito pesado, de bigodes bem feitos, que acreditava que o mundo lhe devia muito. Um sujeito arrogante, segundo muitos. Ciente de seu valor, segundo ele próprio. O pai foi um dos homens do progresso. Um homem ambicioso, sempre ocupado a construir o futuro. 
Mudamos para a cidade grande porque o pai encasquetou que queria construir uma ponte. A maior e mais moderna das pontes. 
Quando o moço da mudança chegou a mãe mandou que eu subisse e carregasse as minhas malas até a entrada. Eram ordens do pai. Eu tinha que aprender a dureza do trabalho. Tinha que aprender a tomar conta de mim. "Uma criança mimada vira um adulto preguiçoso"_ o pai costumava dizer. 
Estava a terminar de fechar a valise quando ouvi um barulho doído no quintal. Corri escadas a baixo com o coração na mão. É que o meu coração já tinha adivinhado o que estava a suceder. Quando abri a porta da cozinha e dei de cara com aquele estranho no nosso quintal, preparado para exterminar a minha amiga, gritei pela mãe e implorei. Implorei para que ela, por favor, não deixassem que acabassem com ela. Ela era a minha melhor amiga. A mãe fez o de sempre. Respeitou as ordens do pai. O pai tinha mandado que cortassem a minha amiga quando eu ainda estivesse em casa. Eu tinha que aprender mais essa lição. 
Os novos donos da casa queriam construir uma piscina no quintal. A mangueira era grande demais, tinha que deixar de existir. 
Ainda tentei impedir o estranho. Corri na direção dele e enchi-lhe de murros e pontapés. Ele riu. Eu ainda era pequeno demais para ser levado a sério. Sem dar por mim ele ligou a motosserra e iniciou a matança da minha amiga. Cortou um pedaço e depois outro e depois mais outro, até que a minha amiga todinha deixou de existir. Antes de acabar de vez, a mangueira fez-me um carinho de adeus. Eu gritei bem alto que não estava pronto para dizer adeus. Foi a última vez que falei. 
O assassinato da minha amiga doeu-me  profundamente, chegou a cantos meus que eu nem sabia que existia. Eu tinha crescido meio a uma mãe sem quereres e a um pai autoritário e violento. Em todas e em cada uma das vezes que a mãe me deixou a cheirar solidão e desapontamento foi a minha amiga mangueira quem me escutou, me acalmou, me abraçou, me escutou e falou comigo. Em cada uma das vezes em que o pai me arrancou um pedaço da alma ou do corpo, foi a minha amiga mangueira quem me ajudou a sarar, a cicatrizar, a ficar de pé outra vez. 
Eu sabia que a gente estava de partida, de mudança. Eu sabia que não íamos carregar a minha amiga mangueira nos ombros para a casa nova, mas, eu ao menos ia poder leva-la dentro de mim, com as nossas bonitas memórias. 
Quando o pai mandou que arraancassem a mangueira na minha frente porque eu tinha que aprender que nessa vida a gente estava sujeito a perder tudo, eu perdi de vez foi o respeito por ele e pela mãe. Entreguei-me de vez a raiva e comecei a passar a contar os dias pela hora da minha partida. 
Terminei de crescer ao lado de uma mãe de ombros caídos e cabeça baixa, que só sabia dizer 'sim senhor' e 'por favor, fala comigo, meu filho'.  Eu não falei. Fiquei calado até o dia de sair de casa de vez, metido em calças compridas.

um abraço e inté a próxima

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