a cor do desespero dela
Vermelho. O chão estava coberto de um
vermelho vivo e quente. O corpo dela esquecido na cabeceira da mesa,
repleto dos pedaços de vidro. Naquela noite ela tinha decidido fazer
diferente.
Escolheu desobeder.
Não comeu o que meteram-lhe no prato.
Apesar de saber que ela tinha a obrigação de mastigar todos os
pedaços e engolir tudinho o que lhe enfiavam no prato e na vida.
Todo o quarto,
toda a casa cheirava a podre. O cheiro não vinha do peixe, que era
fresco e tinha sido preparado com as últimas cebolas e com dois dentes do alho roubados do pequeno oficial. As batatas, apesar de velhas, tinham sido cozidas com
precisão. A cozinheira tinha feito o milagre de encontrar
rosmarinho. O vinho era bom e tinha sido larapiado do padre, que por sua vez o tinha surripiado dos bolsos dos pobres quebrados que fingia servir. As toalhas
um dia tinham sido brancas. Fazia tempo que tinham passado a existir
de outra cor.
A cor da opressão. O cheiro da opressão.
Apesar de
tudo, ela era uma prisioneira. Uma prisioneira metida num vestido
caro, num palácio caindo aos pedaços no meio de uma guerra. Ela
tinha decidido que não ia continuar existindo para o prazer dele.
Naquela noite, ao invés de comer o peixe, encheu-se com pedaços da
taça cara, que deviam ter sido roubadas de uma família rica
qualquer, como a sua. Antes de acabar ela perguntou-se o que mais
será que os invasores roubaram daquela família de estranhos?
Lembrou daquela noite terrível. Os
invasores chegaram. Arrancaram as roupas das mulheres todas e forçaram-nas a aceitar seus membros. Estupraram todas. As novas e as velhas. Não houve lágrimas,
gritos, súplicas ou rezas que os fizessem parar. Fizeram os homens
assistir. Depois cortaram-lhe as cabeças. Algumas das mulheres foram
mortas também. Muitas viraram escravas. Lavar, cozinhar, passar,
servir de objeto sexual.
Ela tinha caído no gosto do chefe.
Virou a bonequinha dele. Presa naquela casa que um dia tinha sido
sua. Ele dizia que era paciente e que ia saber esperar o dia em que
ela soubesse querê-lo bem. Ela decidiu acabar antes. Não ia correr o risco de deixar o cansaço matá-la de vez.
Quando ele voltou pra casa encontrou apenas um corpo frio e azul, da cor do desespero dela.
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