"ostra feliz não faz pérola": conversando com Rubem Alves
“Ostra
feliz não faz pérola” (Rubem Alves)
um outro
eu, mais jovem
obcecado com
o fogo e com a escuridão
teria
abraçado essa provocação como seu mantra
mas hoje
essa verdade não me serve
ao menos
não sem porquês e descontrução
vamos a
todos os seus pedaços então
no começo uma ostra
Rubem está a falar de ostras que criam
ostras são fechadas
ensimesmadas
existem no fundo do mar
escondidas
separadas?
eu hoje
tenho forças pra admitir que é mentira
eu não
quero existir ostra
escolho ser
do mundo
quero criar
no mundo e para o mundo
e pra fazer
isso tenho que aprender a conversar com mais alguém além de mim mesma
Rubem questiona se ostras felizes são capazes
de criar pérolas
hora de abraçar a velha pergunta então
o que é a felicidade?
um estado temporário
desconfio eu
imagino que sim
Rubem está certo
provavelmente na hora exata
em que a felicidade toma conta da vida da ostra
ela não cria pérolas
nem nada
afinal está ocupada demais sendo feliz
Rubem
continua
“pessoas
felizes não sentem a necessidade de criar”
criação é
questão de necessidade então?
coincide com
a minha experiência, sim senhor
sinto um
comichão que me me manda agarrar o caderno ou o computador e insiste que é
preciso lembrar
a minha existência
desbota sem o ato de escrever
sem a
escrita
eu minguo
diminuo
mas quiçá
Rubem está falando de outra coisa
ele insiste
“O ato
criador, seja na ciência ou na arte surge sempre de uma dor”
qual dor?
será a dor
de existir?
ele explica
“não é
preciso que seja uma dor doída.
por vezes
essa dor aparece como aquela coceira que tem o nome de curiosidade”
o que me
faz pensar que sim
é a dor de
existir que nos move à criação
Por fim
Rubem confessa
“este livro
está cheio de areias pontuadas que me machucaram e para me livrar da dor,
escrevi”
Também eu “para
me livrar da dor, escrevi”
no passado
meti-me no lugar da ostra e vomitei minhas dores
enquanto mantinha-me
fechada
hoje também
de algum modo escrevo para me livrar da dor
o que
distingue o eu que escreve hoje do eu que escrevia vinte anos atrás
são os lugares
a partir dos quais falamos
muitos dos
meus textos do passado
paridos por
minha versão ostra
separada do
mundo
só sabem falar
com o meu próprio umbigo
sofrem de
uma incapacidade aguda de ser do mundo
são muito
cheios de si e de mim
para me
livrar da dor, escrevi
O meu eu de
dezessete anos e o eu de hoje
ambos escrevem
por essa mesma razão
para me
livrar da dor
a diferença
entre eles é que o eu de hoje já não quer ser ostra
talvez haja
gênios capazes de existir isolados, separados do mundo e ainda assim criar algo
do e para o mundo
esse nao é
o meu caso
aprendi que
preciso estar com os outros e no mundo para criar
antes de dormir
continuo a rezar
às deusas do caos
mas já não imploro-lhes
para que me guiem na construção de textos pérolas
peço para que
abram a mim e a minha arte para que ambas possamos alcançar mais do que eu
mesma
um abraço e inté a próxima
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