Quis dizer: quando era uma criança
por Caroline Stampone |
Na primeira parte de Quis dizer uma criança tenta falar. Um menino, que tem que deixar de ser criança cedo demais, tenta explicar quem é e como tudo começou. Não é uma missão fácil. Afinal, trata-se do filho da terrorista. Um menino que teve a vida, desde o mais derradeiro início, atravessada por uma ditadura.
Quando essa história começa a ser contada ainda há muito que o próprio narrador desconhece, e mais ainda, há muito que ele quer dizer, mas não sabe como ou simplesmente não é capaz de abrir a boca. Por enquanto.
quando era uma criança é o título do primeiro capítulo de Quis dizer. É aqui _ no começo dessa ficção que imita um livro de memórias_ que o narrador inicia uma trajetória doída. É preciso lembrar as circunstâncias. Falar da mãe que foi engolida pela terrorista. Perguntar pelo pai.
Toda a narração é marcada por uma forma de falar fincada na beira da infância. O que sente-se principalmente nesse primeiro capítulo. Afinal, aqui o narrador está a lembrar da infância. Uma infância que teve que acabar cedo demais e que foi vivida fora das gavetas da normalidade.
Dentre o muito que o menino teve que aguentar estão a experiência doída de tornar-se um engolidor de perguntas. Cedo demais ele teve que aprender a ficar calado. E a imposição da mãe substituta.
Depois que os homens todos iguais invadem a casa do menino e arrancam-lhe a mãe ele é obrigado a ir viver com a mãe substituta. Essa não tinha sido mais do que uma avó desconhecida, que por sua vez, não sente genuína vontade de criar outra criança. No entanto, a avó é movida por seus próprios fantasmas e arrependimentos. Ela acredita que devemos sofrer e agir pelos nossos. Além disso, está numa missão doida. Está em busca do perdão da filha. Para tanto, será capaz de se submeter-se à tudo. Até mesmo à visitas para as quais o preço é um pedaço de si mesmo.
O menino também terá que assistir essa louca missão da vó. Cada centímetro dela. Quando tenta fechar os olhos, um guarda sujo esfrega-lhe uma faca na cara e obriga-lhe a ter dignidade, mesmo debaixo das saias da vó.
Enfim, a infância aqui relatada não é colorida, e nem acorda uma doce melancolia no leitor. Trata-se de uma infância repleta de injustiças. Uma infância da qual o menino é arrancado, mesmo sem nunca ter tido a chance de nela estar completamente. A infância de quem nasce clandestino em terra estrangeira. A infância de quem é arrastado por duas ditaduras, como fugitivo, sem nem saber porque ou até quando. A mãe diz que é hora de correr e o menino obedece. Simples e complicado assim.
Confira um trecho de Quis dizer a seguir:
"Eu não nasci aqui.
Nasci num país vizinho, onde as pessoas falam outra língua e onde a
minha mãe não tinha muitos amigos. Naquela outra terra ela não
sorria muito. Nem conseguia gastar muito tempo perto de mim. Eu fui
descobrir que a mãe era diferente quando voltamos para a nossa
terra. Foi a mãe quem disse que essa era a nossa terra. Na minha
certidão de nascimento estava escrito que eu era da outra terra. A
mãe disse que não, que eu não era. A gente ia voltar para a nossa
terra e tudo ia ser melhor. Ela sorriu quando disse isso.
A gente teve que
sair correndo. A mãe explicou que antes tínhamos o direito de viver
ali, mas, que agora tudo tinha mudado, porque a mesma injustiça que
tinha nos expulsado da nossa casa, agora estava expulsando a gente de
novo. Achei que ninguém gostava da gente. Pensei que a gente devia
ter algum defeito muito grave para toda a gente mandar a gente
embora. Perguntei à mãe qual era o nosso problema. Ela disse
enfaticamente: nenhum, eles é que são o problema.
_ Eles quem?
_ Os ditadores. Os
ditadores é que são o problema.
Foi a primeira vez
em que ouvi essa palavra. Eu não sabia o que significava. Pedi à
mãe que me explicasse. Ela disse que explicaria depois. Agora não
tínhamos muito tempo. Mandou que eu colocasse na mochila o que fosse
mais importante. Nós tínhamos que partir em dez minutos. Por que
essa correria toda? Era hora de dormir, não era hora de correr. A
mãe disse que não existia hora marcada para correr. Tínhamos que
correr e logo. Se não corrêssemos eles chegariam antes e a gente ia
ser separado.
_ Eu vou ser metida
numa prisão e sabe-se lá o que eles farão com você.
_ Eles, os
ditadores?
_ Sim, os ditadores
e os funcionários dos ditadores, que são tão ruins quanto eles. " (Quis dizer)
Quem quiser saber um pouquinho mais sobre o começo do processo de criação de 'Quis dizer'_ que nasceu como um presente provocação para um bom amigo_ pode conferir mais esse pedaço da história sobre a história. Basta clicar aqui.
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