aprender saudades

Divido um trecho do livro no qual estou trabalhando no momento, que acho que vou acabar chamando  'O filho da mãe ou o filho da terrorista'. Comecei a trabalhar nesse projeto já faz tempo. Primeiro chamei-o de 'Quis dizer'. Já contei um pouquinho dessa história em posts anteriores.  É uma história dura. Ficção que fala de verdades. A história de um menino que teve que crescer cedo demais e que teve a sua vida atravessada por uma ditadura. Quem quiser saber mais a respeito dessa história pode conferir aqui ou aqui.
um menino começando a sumir, cedo demais, apesar disso, ele ainda tenta deixar o mundo mais habitável

Agora é hora de pensar saudades, poetar saudades, pesar saudades espiando a conversa entre o protagonista dessa história e o sabido João de deus.
"Pedi explicações mais uma vez. O João então falou assim: “é bom sentir saudades, sabia?”. Eu sabia não. Que coisa mais sem cabimento. Como é que podia ser bom uma coisa que machuca mais do que peixeira afiada, metida sem dó no bucho da gente? O João foi logo dizendo que a saudade sabia metaforsear-se. Não precisava ser peixeira afiada a vida inteira. Podia virar travesseiro, árvore, pedrinha de carregar no bolso, estrela e até flor. "
Mais tarde o João de deus explica que "é muito bom ter do que sentir saudades. A gente só tem saudade daquilo que foi bonito, especial, significativo. A gente tem saudade das primaveras da nossa vida. Saudades das pessoas que foram capazes de fazer a gente sentir como se a gente fosse um tiquinho do mundo inteiro. Saudades daqueles que dividiram entusiasmo com a gente. Saudades de alguém cujo abraço é capaz de parar o tempo. 
 O João de deus continuou falando por muito tempo. Acho que no meio do caminho ele esbarrou nas suas próprias saudades. Eu não liguei. Ele tinha sido sempre tão bom para mim, não custava nada servir de orelha para ele por uma noite e umas horas. Por fim, pelas saudades do João de deus, um tanto doídas e com pedaços a embolorar, eu entendi que uma vida plena precisa de saudades. Não tem como a gente seguir em frente carregando sempre tudo e todos com a gente. Tem coisas que tem que ficar para trás. Quando tudo o que a gente deixa para trás pode ser esquecido, assim num piscar de olhos, é sinal que alguma coisa está errada."
Daí, quando o protagonista estava quase aceitando que sentir saudades é uma coisa boa, o João de deus atirou ao chão todos os maniqueísmos. 
"_Mas a gente também tem que tomar cuidado para que a vida não seja só saudades." _ esclarece o João de deus. 
O protagonista se desespera, regride e derrama no quarto fechado as suas frustrações e dores, num grito que diz assim:
"_ Como é que pode ser bom sentir saudades? As saudades são como uma vara curta e afiada, cutucando a ferida aberta duma ausência. "
O João de deus, com paciência explica: 
 "Não é qualquer um que tem do que sentir saudades. Ter algo ou alguém para sentir saudades é um sinal de que você viveu, uma lembrança de que você existiu dentro de um outro, e que um outro achou casa em você. É como uma flor seca guardada dentro dum livro."
O João ainda lembra o protagonista que a gente não pode lutar contra a natureza das coisas. "As flores não existem para durar para sempre. Têm o tempo certo para abrirem-se, depois envelhecem e murcham. Tudo o que podemos fazer é guardar uma lembrança. Tirar uma foto. Guardar uma flor seca dentro de um livro. Mas, o mais importante é não esquecer de olhar para as flores que irão florescer na próxima primavera. Sempre haverá uma próxima primavera." 

Quem gostou ou ficou curioso com essa história em andamento pode espiar outros trechos da mesma. Basta clicar aqui ou aqui


um abraço e inté a próxima, 

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