A morte do pai parte II: o pai, o filho, o escritor e outros
Como
prometido, hoje volto a falar de 'A morte do pai', o volume I da
novela autobiográfica em seis volumes do autor norueguês Karl Ove
Knausgaard. Quem ainda não leu as minhas primeiras divagações
sobre o assunto pode dar uma espiadinha aqui.
Hoje
falo menos das minhas obsessões e me aproximo um tiquinho mais das
verdades vomitadas pelo autor. Um homem, que um dia foi um menino, um
filho, virou um pai, um marido, continuou sendo um irmão, escolheu
ocupar o mundo no lugar de um estrangeito, fez-se escritor, depois
prometeu que nunca mais iria escrever. Mas, não desesperem-se. Ele
mudou de ideia.
Quando
Knausgaard lembra ele não esconde-se atrás das primaveras da vida.
Ele não descreve apenas cheiros bonitos. Interessa-lhe cheiros
reais, por mais inapropriados que esses possam ser. Quando ele viaja
através da sua própria vida, e divide verdades de memória, ele
usa todos os seus pedaços, explora todos os seus papéis. Divide as
certezas e dúvidas que marcaram cada um de seus pedaços, com
honestidade e sem medo das palavras feias. Ao fazê-lo, ele atinge
uma arte que vai muito além da sua própria vida. Deixa-nos uma obra
de arte, que acaba por lembrar a nós leitores, que também nós,
somos um amontoado de pedaços, uma complexidade de papéis. E que
também a nossa vida e as nossas memórias são ocupadas por alguns
cheiros desagradáveis.
A
narrativa de Knausgaard viaja no tempo. Primeiro, ele está na
Suécia, no escritório, tentando escrever. O que é difícil, porque
há todas as obrigações que um pai e um marido têm. Mas daí, de
repente, ele já não é mais o escritor lutando para achar a sua
voz, ele é outra vez um menino pequeno, metido na casa, entre as
solidões de seu pai, de sua mãe e de seu irmão.
Knausgaard
lembra e deixa o menino que ele foi existir outra vez. O menino
conta-nos como era ser um garoto na Noruega dos anos 70. Explica-nos
o que é liberdade ao comparar os jantares preparados pela mãe e os
jantares preparados pelo pai. Quando era a mãe quem preparava o
jantar eles podiam relaxar, escolher o que é que queriam colocar
encima do pão. Com o pai era diferente. Já estava tudo pré
preparado e pré decidido. Não havia espaço para liberdade.
Durante
a leitura a gente até esquece que o menino não é o primeiro e
único narrador daquela história, tamanha a inteireza dele. E
Knausgaard faz isso com todos os seus pedaços. Expõe-os. Deixa-os
viver intensamente e dividir suas certezas e dúvidas. Como se eles
não fossem sombras ou fantasmas, mas pessoas inteiras.
Mais tarde, já na segunda parte desse primeiro livro, quem existe é o homem adulto, de vinte e tantos anos, casado, que acabou de escrever o seu primeiro livro. É esse homem que retorna à casa da vó, para enterrar o pai. Quando ele volta ele lembra dos lugares, das pessoas, da vida que um dia viveu ali. Mas, percebe que aquelas memórias já não sabem viver nele.
Mais tarde, já na segunda parte desse primeiro livro, quem existe é o homem adulto, de vinte e tantos anos, casado, que acabou de escrever o seu primeiro livro. É esse homem que retorna à casa da vó, para enterrar o pai. Quando ele volta ele lembra dos lugares, das pessoas, da vida que um dia viveu ali. Mas, percebe que aquelas memórias já não sabem viver nele.
"
(...) I could still remember; what happened was that the memories no
longer stirred anything in me. No longing, no wish to return,
nothing. Just the memory, and a barely perceptible hint of an
aversion to anything that was connected with it" (p.224)
[Eu
ainda podia lembrar; o que aconteceu foi que as lembranças já não
agitavam nada em mim. Nenhuma saudade, ou vontade de voltar, nada.
Apenas a memória, e uma marca quase imperceptível da aversçao a
qualquer coisa que estivesse ligada a ela] (tradução livre
minha).
Mas
não é somente quando deixa os seus muitos pedaços falarem que
Knausgaard nos alcança. Ele também sabe trazer até nós verdades
atemporais enquanto fala dos outros.
"(...)it
struck me that he was searching for something, and that he would not
find it there, nor anywhere else either. Time had passed him by and,
with it, the world." (p.225)
[pareceu-me
que ele estava procurando por alguma coisa, algo que ele não
encontraria ali, nem em nenhum outro lugar. O tempo o tinha deixado
para trás, e com ele, o mundo]. (tradução livre minha).
Não
importa saber de quem ele está falando. O que importa é o modo como
essas palavras acabam por alcançar a todos nós. Quem é que não
conhece o medo de perceber tarde demais que já não há tempo? Que
já não há mundo?
Por
hoje é só. Na próxima terça-feira volto a passear por essa novela
deliciosa.
um
abraço e inté a próxima,
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