Memórias pesadas e urgentes

Alguns tentaram convencer à si mesmos, repetiam aos outros que existiam para defender à nação e as pessoas de bem. Julgavam saber que terrorista não era gente. Comunista tinha que ser eliminado. E essa lenga lenga de direitos humanos só punha a pátria em risco. "Essas pragas podem disfarçar-se de tudo, até mesmo de mulher grávida.". É o que repetiam para si mesmos. De certo para ter estômago para continuar quebrando gente, dia após dia. Os torturadores, servidores do Estado, queriam acreditar que eram apenas homens de bem fazendo o seu trabalho. 
A verdade é que não pouparam nem mesmo as mulheres grávidas da tortura. Ameaçaram torturar seus recém nascidos. Causaram abortos, consequêcia de choques elétricos e ameaça de estupro. 
"Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei" (Izabel Fávero em Direito à memória e à verdade: Luta substantivo feminino). 
Nos diversos depoimentos das presas políticas torturadas é recorrente a descrição de abusos por parte dos servidores da ditadura. Torturadores que muitas vezes transformaram-se também em estupradores. Segundo a opinião de uma das ex presas políticas tratavam-se de "seres anormais que faziam parte de uma engrenagem podre" (Dulce Maia em Direito à memória e à verdade: Luta substantivo feminino). 
Dulce Maia foi estuprada logo nos primeiros dias de tortura. Conta que nunca foi capaz de esquecer a cara do torturador estuprador. "Hoje eu ainda vejo a cara do estuprador. Era uma cara redonda. Era um homem gordo, que me dava choques na vagina e dizia: 'Você vai parir eletricidade'. Depois disso me estuprou ali mesmo" (Dulce Maia em Direito à memória e à verdade: Luta substantivo feminino). 
Os torturadores além de desrespeitarem completamente os direitos humanos também acrescentavam às sessões de tortura altas doses de machismo. São diversos os depoimentos em que  as presas lembram que eram chamadas de 'putas terroristas', 'vacas terroristas', 'ordinária', dentre outros. Rose Nogueira conta que era forçada a subir numa espécie de palco enquanto tinha as suas nádegas e seios beliscadas pelos torturadores que repetiam: "Olha aí a Miss Brasil. Pariu noutro dia e já está magra, mas tem um quadril de vaca. Só pode ser uma vaca terrorista.". 
Sei que essas não são memórias bonitas. Mas, precisam ser trazidas à tona. Precisamos ter consciência que essas atrocidades aconteceram. Só assim, estaremos preparados para gritar: não mais! 

O livro Direito à memória e à verdade: Luta substantivo feminino (organizado por Tatiana Merlino e Igor Ojeda) está disponível em: http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br

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