Um conto: Silêncio de dois




Silêncio de dois é um dos meus contos de gaveta.
Fala do envelhecer, de encontros e desencontros, enfim, duma humanidade que para ser completa precisa ser capaz de quereres. Protagonizado por uma mulher velha, que passou a vida inteira a aceitar tudo o que lhe era oferecido e que acabou por aceitar também o pedaço de taça que o marido estendeu-lhe, num último momento. 
Silêncio de dois é uma história pesada e atravessada pelo absurdo. Um absurdo que vem a tona para desnudar as muitas faltanças duma vida esquecida na repetição e na rotina. A vida de alguém que já não sabe mais querer. 
Silêncio de dois fala de dois silêncios, um que sabe dar espaço e até mesmo unir pessoas. O outro, pesado, só distancia, isola e cria desconhecimento. Silêncio de dois começa assim:
"A taça caiu, espatifou-se em minúsculos pedaços. Ele não pôde contar. Agarrou um e desenhou uma pequena flor, na pele. Era vermelha. Sorria-me. Não disse palavra. Ofereceu-me o punhado da taça e levantou a camisa. Eu e aquele instrumento, até então desconhecido, hesitei por segundos, mas, lembrei que era um bocado da taça, a mesma taça que eu já tinha levantado tantas vezes, para brindar, com ele, mais um ano daquilo e daquilo outro, para torcer para que chegássemos ali ou acolá, para comemorar a promoção que chegou, tarde. Eram tantos anos a permitir que aquelas taças se encontrassem no timtim, que já não ouvíamos.
_ Quando é que paramos de ouvir?
Ele não sabia? Não respondia. Chacoalhei-o, com força.
_ Responde, só dessa vez, é que é importante. Quando é que paramos de ouvir?".
No começo do conto o absurdo já faz-se presente, misturado a uma verdade tão simples: o silêncio pesado. Um silêncio que não foi escolhido ou desejado. Um silêncio que impôs-se entre duas pessoas e fez delas duas ilhas incomunicáveis.
A protagonsta, cansada, tenta escapar do silêncio, mas já não é capaz.
"Tinha gastado a vida toda calma, circulada por aquele silêncio, primeiro leve, depois pesado. (…) Nos últimos tempos, o silêncio invadia a casa logo cedo. Abria as janelas bem abertas e zunia silêncio na minha cara, um silêncio gorducho, ensebado, irritante. Eu abria e fechava a geladeira, para pegar o leite e o mamão, para fazer em pedaços. Os segundos da porta da geladeira a ir e vir, vivendo, punha o silêncio a dormir, eu ria aqui dentro. Corria a ligar a cafeteira, na esperança louca de que o silêncio não voltasse a viver. Pobre de mim, tão tola! Não era rápida o suficiente. Há muito que já não tinha vinte anos. As pernas eram lentas. O silêncio ressuscitava mais forte, o barulho da cafeteira ao lume já não era suficiente nem para esconde-lo, o resto do dia tinha que atura-lo. E, quando ele chegava e sentava-se na sua cadeira, para comer a sua fatia de pão com manteiga e  mel, tomar o seu café com leite, comer o pedaço de mamão, agradecer-me com o mesmo beijinho na testa, agarrar no jornal e dizer que já estava pronto para a digestão, fechar-se na casa de banho, a mesa por desfazer e o silêncio cada vez maior, mais pesado, a fazer-nos companhia.
Quem é que tinha me metido ali? Quem é que  tinha querido aquela vida?".                    

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