antes do começo acabar

por Caroline Stampone 
No começo ela cantava liberdade. O tempo todo. Acordava e adormecia liberdade. 
No começo ela ria bem alto das minhas piadas e da minha falta de jeito. 
No começo ela parecia sempre a mulher mais linda do mundo, mesmo quando acordava de ressaca. 
No começo era um deleite ouvir ela falando.
nas horas todas a voz dela tinha lugar.
ela sempre tinha tanta coisa interessante pra dizer.
tantas perguntas, provocações, certezas passageiras, 'mentiras sinceras', causos, teorias, poesia e quem ela queria ser. 
Sobramos eu e quem ela pôde ser. 
Enfiada na casa ela já não sabe cantar liberdade. 
Enfiada na casa criou um vício de silêncio.
faz cara feia quando eu ligo a vitrola.
trocamos meia dúzia de palavras durante um mês inteirinho. tem vezes que nem isso. 
No começo gostava tanto do eu mesmo dentro dos olhos dela.
um outro eu. 
Sabe quando alguém te olha daquele jeito? 
Aquele jeito que te deixa maior... 
não, não é bem isso. 
Aquele olhar que te deixa mais bonito... 
pensando bem também não é isso. 
Aquele olhar... aquele olhar que tem o poder de fazer você acreditar em você mesmo. Faz você acreditar na vida e nos outros. Aquele olhar que te mostra um cara que quer viver. Um cara que merece uma vida cheia de entusiamo. Era isso. Era eu, mas numa versão melhorada.
No começo ela trazia-me o melhor de mim. A versão do meu melhor enredo. É que naquela época ela vivia para o entusiasmo. 
Por um suspiro de vida fui eu quem a entusiasmei. No começo. 
Agora ela já não me olha mais nos olhos. O que é culpa minha. 
Nos últimos tempos só me encarava com amargura e ressentimento. 
Passei a abaixar a cabeça sempre que ouvia os passos dela. 
Depois de um tempo ela deixou de tentar olhar para mim. 
Eu sei que ela me culpa por tudo o que não foi... 
Queria achar um jeito de conseguir dizer a ela que eu também sinto muito.
Queria achar modo de lembrá-la que eu também sinto falta de quem ela foi antes da gente. Antes do começo acabar. 

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