a vida da vó

por Caroline Stampone
A vida inteirinha da vó foi trabalhar.
Nascida numa família comprida, que muito cedo veio a conhecer a fome. Nunca tinham sido endinheirados, mas no começo ainda podiam viver do que a terra lhes dava. Mas daí o pai resolveu mudar-se para a cidade. Tinha ouvido falar que ali a vida era menos dura, havia uma tal de luz elétrica, que não deixava ninguém no escuro. A água não tinha que ser buscada no rio, nem no poço. Chegava em canos, dentro da casa de cada um. O que ninguém lhe disse é que era preciso pagar por tudo isso.
O trabalho na fábrica não era fácil. Ainda mais duro do que a lida com a terra. O pai trabalhava quatorze horas todos os dias. Naquela época não tinha isso de fim de semana, não. De qualquer modo, o dinheiro nunca bastava para por comida na mesa. Também pudera, agora quase tudo tinha que ser comprado.
A mãe ainda fazia das tripas do coração pra ter umas galinhas e uma hortinha no nosso quintal pequenito, mas aquilo não dava para nada.
Cedo a filharada toda começou a trabalhar.
A vó começou a trabalhar em casa de família endinheirada quando tinha oito anos. Seu pagamento? Os restos de comida. Ela ia enganando a fome como podia. Sempre se esforçava para levar alguma coisa para casa.
Quando não havia restos nem do almoço e nem da janta e a patroa estava de bom humor ela dizia:
_ pode levar para sua casa esse meio quilo de arroz.
Era sempre arroz ou batatas.
Eles tinham carne, fruta, café e doce todo dia. Mas para a criadinha, para a mocinha pobre que ela fazia a 'caridade' de ajudar, era sempre arroz e batatas.
Uma vez a vó cometeu o erro de experimentar um quadradinho de chocolate. A patroinha notou e foi reclamar para a mãe, que como punição obrigou Maria a trabalhar o resto do dia sem comer nadinha.
Quando a vó começou a trabalhar ela nem alcançava a pia. Era preciso subir num banquinho para lavar a louça. Ela subia e não reclamava. Mas sentia a dureza da vida. 
A vó gastou uma longa parte da vida com aquela sensação de que ia precisar sempre de um banquinho. Como se ela não fosse nunca ter tamanho de gente. Como se ela não fosse nunca ter direitos de gente.
A vó trabalhou na casa dos outros por quase cinquenta anos. Nunca aprendeu a ler ou escrever. Não sobrou tempo.
Depois de muita luta e trabalho duro, um dos filhos da vó conseguiu estudar, arrumou um trabalho melhorzinho, e daí ajudou ela a montar uma barraquinha, onde ela vende roupa usada e fruta que ela mesma colhe. 
Agora ela tem uma casa na roça outra vez, com uma horta que dá gosto de ver. 
Desde que a vida deixou de ser só trabalho a vó nunca mais subiu num banquinho. Agora ela senta-se na mesa da sua vendinha, conversa com os turistas sem pressa. Gosta quando algum dos meninos da escola para para lhe fazer uma leitura. Até mandou espalhar a notícia que troca leitura por fruta e legumes do seu quintal. 

Comments

Popular posts from this blog

Os amantes do café Flore: Beauvoir e Sartre

Conversando com “Vozes Mulheres” de Conceição Evaristo

Strangers de Taichi Yamada