amarguei por culpa da guerra

Quando aconteceu a primeira explosão eu estava lavando as camisas dele. Escutei um barulho. Daí percebi que a força tinha acabado. Corri para achar as crianças. Não estavam em nenhum canto da casa. Por longos minutos fui só desespero. Daí lembrei que os meninos estavam na escola. Calmei. É que escola é lugar seguro, não é mesmo?
Não no meio da guerra.
Duas semanas de bombardeios foram suficientes para deixar claro que no meio duma guerra como essa não há lugar seguro. Não há lugar para nós.
Explodiram soldados, civis, crianças, velhos, cachorros, casas, escolas, lojas, sonhos, roupas recém compradas, retratos de familia, esperança, gente ja meio morta e gente que mal tinha nascido.
Todo dia um conhecido meu acaba. Há dias que são famílias inteiras, explodidas de uma vez. Eu até desconfio que seja menos ruim assim. Partir com os seus, ao invés de sobrar sozinha. Ha uns mortos que tem direito a funeral. Para outros não sobra familiar ou conhecido vivo para carregar o caixão. E há os casos em que o que não sobra é corpo. Só um amontoado de carne, como se alguém tivesse derrubado a carne do almoço pelo caminho, e a deixado ali, no meio da rua, com o resto do absurdo caos. 
Eu tenho me agarrado aos poucos segundos em que sou capaz de caçar alguma beleza ou alegria. Esperança também serve. Um tiquinho de inocência que seja já me salva por mais um dia, me impede de desistir.
Ele ainda não voltou. Sobramos eu, as crianças e as camisas lavadas. Ninguém sabe me dizer se está vivo ou morto. O jeito é sobreviver, se não por mim, pelas crianças. E são as pequenas exceções desse tempo de guerra, que me impedem de acabar.
Antes de ontem o meu tiquinho de alegria foi o sorriso de uma criança desnutrida que bateu a minha porta para pedir comida. Fiz-lhe um belo prato e dei-lhe também uma das bonecas velhas da minha menina do meio. O sorriso de felicidade daquela pobre criança me fez esquecer por uns segundos que estamos em guerra. Aquele sorriso aberto, que acordava-lhe o rosto miúdo e ossudo, fez-me esquecer as camisas que ele não tinha voltado para usar. Aquele sorriso ao mesmo tempo doído e ingênuo ajudou-me a aguentar mais um dia. 
Ontem agarrei-me a eletricidade que voltou por hora e meia. Pude carregar o celular e ligar para o pai. Ouvir a voz do pai foi o que me manteve viva mais um dia. Ele disse que eu tinha que ser forte, que tinha que acreditar que cedo ou tarde ele reapareceria, vivo ou morto.
Foi aí que percebi que não sei se quero saber. Enquanto ele está desaparecido ainda posso ter. Não soube completar a frase. Sei que o que tenho não é exatamente esperança. É quase como uma negação de luto, uma espera para que acabemos todos, logo de uma vez, assim não vou precisar dizer-lhe adeus.
Hoje ainda não achei ao que me agarrar. O desespero começou bem cedo. O dia ainda não tinha nem clareado quando recebemos mensagens do exército inimigo dizendo que temos que deixar nossas casas, porque essa área vai ser bombardeada. Não dizem para onde temos que ir. Só que temos que partir. 
Quando disse às crianças que vamos deixar a casa elas ficaram felizes. É porque não entendem os alcances da guerra. Não sabemos para onde estamos indo e nem se a nossa casa vai ser destruida pelas bombas ou se vai sobrar no meio do caos. Tudo o que as crianças sabem é que vão finalmente sair de casa. Desde que a guerra começou não viram mais a cara da rua. É que eu os proibi terminantemente de deixar a casa.
Sempre que pediam 'Mãe posso ir a venda comprar doce?'. Eu respondia não.  'Mãe posso ir ali brincar com os meus colegas? Eu respondia não.  'Mãe posso ir a escola?'. Eu respondia não. 'Mãe posso ir até a esquina ver se o pai já volta?'. Eu não respondi e mantive as portas trancadas.
As crianças chateavam-se comigo e resmungavam que não gostavam mais de mim. 'Era melhor que o pai voltasse logo'. Diziam que sem ele eu era dura demais e só sabia dizer não. Não entendiam que dizer não era o melhor que eu podia fazer por eles.
Outro dia o meu menino maiorzinho disse assim para os irmãos mais novos: 'a mãe desaprendeu a doçura da vida, ficou amarga'. Têm razão o meu menino. 
Eu amarguei, endureci, apaguei. Tudo culpa da guerra.

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