Ariano chega ao céu


Antes de entrar ocupou-se duma questão: na pele de quem é que ia adentrar o céu?
Deixava que o cangaceiro manso o levasse?
Ou seria melhor o mentiroso?
Podia ser que o professor tivesse melhores chances? Mas era um risco. Como é que ia ter certeza, se pelo menos no céu os professores eram reconhecidos?
Podia dar voz ao cantador sem repente.
Mas também podia atacar de profeta, uma última vez.
Até lembrou do frade sem burel, mas acabou por optar pelo palhaço frustrado. É que chegar ao desconhecido parecia que combinava com a tentação de fazer rir. Quem sabe não fazia a morte chacoalhar-se toda, divertida por uma de suas piadas?
Ariano sabia que as chances eram poucas. Uma vez que ele como palhaço era um ótimo poeta. E poetas ajudam a subir a montanha, mas nem sempre sabem acordar o riso fácil. Apesar dos pesares, ainda era a melhor das opções,  apertar a mão da morte na pele do palhaço frustrado. É que esse sim, entre uma piada e outra, todas sem grande efeito, acabava sempre por falar do que importava. Nunca deixava de vomitar suas verdades, mesmo quando o público não estava preparado para elas. 
por Caroline Stampone

Ariano não ficou surpreso quando foi recebido por uma morte espertalhona, travestida em João Grilo. Ela foi logo espoletando, com sotaque nordestino mesmo:
_ Nos teus tempos mundanos, novato, tu disseste e fizeste coisas que foram do agrado do chefinho, mas, também houve outras que nem tanto.
Ariano, o palhaço frustrado, perguntou a morte espertalhona se ele achava que tinha jeito de gastar uma vida inteirinha com concordâncias?
A morte respondeu sem jeito, que bem podia ser que não. Daí disse que era hora de entrar na fila, para trocar uma palavrinha com o chefinho.
Ariano, o palhaço, respondeu que não havia precisão de ficar esperando não. Uma hora que o chefinho estivesse disponível eles iam trocar um dedo de prosa, com certeza.
O que Ariano queria saber é se havia algum canto onde ele pudesse encontrar livros, e quem sabe, papel e caneta. 
Mas para que? _ quis saber a morte.
_ Para continuar existindo _ respondeu Ariano.
A morte quis saber se faltava-lhe o conhecimento da sua presença, bem ali, na frente de Ariano. 
_ Morte morrida, a sua, muito prazer. 
Ariano respondeu que não, faltava não. Ele sabia quem ela era. E tinha que admitir que não sentia assim muito prazer em conhecê-la. Se fosse por preferência dele, aquele encontro ia ter sido adiado uns longos anos. 
A morte disse que sabia. Tinha notado, inclusive, que ele tinha adiado aquele encontro o quanto pode. 
_ Foi assim mesmo _ admitiu Ariano. E por fim, fez mais uma confissão. 
_ Agora que cá estou, escolho continuar a ser um "realista esperançoso". 
_ E por acaso a tua esperança versa sobre um saldo positivo no acerto de contas para com o chefinho?_ quis saber a morte. 
Ariano esclareceu que não tinha contas a acertar. Tinha entendido o essencial. Pois bem, "não era tudo permitido, então, havia de haver deus". E era o caso. Além disso, ele não tinha sido santo, mas tinha se ocupado duma luta digna. Tinha sido artista. E naquela altura da morte, que era apenas o começo, não havia precisão de pressa. 
_ Eu estou aqui, você está aqui, o chefinho está aqui. E para mim é só o começo. 
A espertalhona da morte, por fim deu-se conta, da esperteza do próprio Ariano. Por isso resolveu estender o dedo de prosa com o novato. Era hora de perguntações. 
_ Será que o novato podia me explicar, sem palhaçadas ou piadinhas, por que é que quando ainda era vivo, costumava dizer que toda morte tem um quê de suicídio?
Ariano explicou que estava falando daquele tiquinho em que a gente se deixa levar. A morte devia conhecer esse tiquinho melhor do que ele. Riram juntos. A morte admitiu que ele tinha sido um dos mais resistentes que ela já tinha visto. Não facilitou o seu trabalho, nem um tiquinho de nada. 
Ariano admitiu que foi mesmo assim, enquanto ele pode. 
_ Mas para toda a gente chega uma hora em que esse tiquinho gruda-se aos ossos de tal forma que não tem mais como escapar de ti, não é mesmo?
_ São as regras do chefinho. 
A morte espertalhona quis saber porque Ariano, ao contrário de tantos outros escritores do seu tempo, não tinha defendido que o chefinho era ilusão ou que ele tinha morrido, ou algo assim. 
Ariano esclareceu que nunca foi um homem de seguir a boiada. Afinal, havia o cangaceiro manso que vivia dentro dele. Muito menos era cabro de agarrar-se a verdades temporâneas. Era um cabra que tinha gosto em usar os próprios miolos. Também não tinha medo de deixar os miolos se misturarem ao sangue, a imaginação ou até mesmo a paixão. Além disso tudo, nunca teve o pudor de fingir-se um não mentiroso. 
Quando cruzou com a verdade temporânea de que "deus não existe e portanto é tudo permitido", fez como sempre. Pôs os miolos a dançar. Esbarrou numa outra verdade: não é tudo permitido. Logo, concluiu que o cara existia. 
A espertalhona da morte disse que ficava feliz quando recebia um novato assim como Ariano. 
Ariano quis saber 'assim como?'. 
_ Assim, um pouco doido, um pouco palhaço, um pouco mentiroso, com esse gosto por sotaques e essa falta de paciência para o pop. Um cabra que sabe usar as palavras e que não tem pressa para me entender, nem tem pressa para saber o que vem depois de mim. Um cabra que mesmo depois de encontrar-se comigo quer continuar existindo. E é por isso que vou lhe fazer o agrado de mostrar-lhe onde estão os livros, o papel e caneta. Assim pode continuar ocupado da sua arte. 
Ariano agradeceu a morte e os dois andaram juntos até o jardim dos sonhadores e palhaços. 
No caminho Ariano puxou um último dedo de prosa com a morte: 
_ A senhora sabe o que eu costumava dizer quando ainda era vivo? 
_ Pode ser que sim e pode ser que não. O novato disse tanta coisa. A qual delas se refere? 
_ Eu dizia assim: "na minha visão, a literatura_ e a arte de modo geral_ é uma forma precária, mas ainda assim poderosa de afirmar a imortalidade. Também na minha visão, o homem não nasceu para a morte, nasceu para a vida e para a imortalidade". 
A morte deu uma gargalhada sonora e por fim desabafou: 
_ Se os cabras lá embaixo resolvem te dar ouvidos, eu é que fico sem emprego. 

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