ela e o desespero, as margens

Ela queria voltar. Mas, voltar como? Virar e retornar. Simples assim? E a casa era onde? 
Debaixo do monte de restos? A bomba. Caiu-lhes encima e espatifou quase tudo. Deixou um resto que teve que aprender a sobreviver. 
Atravessou um oceano. Chegou numa terra onde não foi bem vinda. Atiraram-lhe às margens. Não reclamou. Reclamar com que voz?
Muitos passam por ela e não a enxergam. Virou pedaço da paisagem já. Ignoram-na e seguem caminho, certos de que as suas vidas são mais importantes. 
Alguns têm medo de olhá-la nos olhos. Medo do desconhecido. Medo de se conhecerem se ousarem olhar para aquela mulher parada ali, em frente ao metro, marcada por tantas injustiças. 
Outros repetem um ódio vazio, que insiste em mentir que ela e outros como ela são os culpados pela crise, são invasores que devem retornar a sua própria terra, a sua própria casa. 
Há também aqueles que olham para ela e sentem pena. Teve aquele estranho que ofereceu-lhe um punhado de moedas. Depois continuou andando, mais alto, mais inteiro, certo de que tinha feito a sua parte para salvar o mundo. 
Ela disse obrigado, naquela língua nova, que ainda estava se esforçando para aprender. Fez os cálculos mentais. Aquelas moedas dariam para comprar legumes para fazer uma sopa para sete, talvez nove, se ela economizasse nos ingredientes. 
Lembrou da família que teve que deixar pra trás. O filho pequeno que estava brincando no quarto quando a bomba caiu. Ficou para sempre debaixo dos restos da casa. O marido ficou pelo meio do mar, enquanto tentava salvar a menininha deles que caiu do barco. 'Ao menos acabaram juntos' _foi o que disseram à ela, um gesto vazio para tentar consolá-la. 
Sobrou ela e o seu desespero, as margens. Fazer o que? 
Decidiu voltar para o acampamento andando, para economizar o bilhete de ônibus, que trocou por mais alguns legumes, no mercadinho em que parou no caminho. Agora tinha o suficiente para preparar uma sopa para quinze. E foi o que fez. Preparou a sopa que garantiu a sobrevivência de quinze, por mais aquele dia. 

Comments

Popular posts from this blog

Os amantes do café Flore: Beauvoir e Sartre

Conversando com “Vozes Mulheres” de Conceição Evaristo

Strangers de Taichi Yamada