vida desbotada

por Carol Stampone

os pés sujos de terra
do lado de fora de tudo que quase foi
é época de campanha outra vez
penduram na praça umas caras bem alimentadas
e uns sorrisos bem engravatados

no centro 
o velho palanque
nem é preciso decorar a ladainha
o papel bem a vista
afinal, ler é um privilégio
coisa de doutor

o doutor fala bonito 
promete luz, vida eterna e água encanada 
garante que deus é seu cabo eleitoral mais fiel
e promete que depois de eleito
irá fazer milagres sem precedentes

a menina apequenada
se encolhe assustada 
por causa das ordens do doutor
agora que a cidade dorme
ele exige que ela se desnude 
e faça jus ao cobre que ele pagou
por ela 

ela ainda tenta argumentar 
que não é coisa que ele possa comprar
pede, implora
por piedade 
por liberdade
ela não quer virar moça falada
do doutor embarrigada

ele escuta ela não
a cidade dorme 
enquanto a menina chora
saudosa da inocência que acaba de lhe ser arrancada 

Meses depois 
aparece 
mais uma criança sem cor 
não o doutor
que tem doutorado não
mas, sabe falar bonito
e nasceu com nome de quem tudo pode

pode roubar a inocência e a esperança 
e continuar pelo mundo afora
impune 
a mastigar privilégios e a apagar as cores 
das vidas de Zé e Marias ninguém 

A verdade é que o pai da criança sem cor e sem nome
vale menos que o sorvete caseiro 
que a menina mãe deixa escorrer

ela, de propósito
suja-se com o vermelho doce
que desfaz-se como a infância
debaixo do sol quente
a colorir
por uns minutos
a saia
desbotada
como a vida por essas bandas. 

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