a história da outra
por Carol Stampone |
Conheci-a já amarga e murcha. Pequena que só. Tinha dias que nem
dava por ela. Era como se fosse mais um móvel velho, esquecido pela
casa. Só o pó se aproximava dela.
Quando vieram me contar que ela tinha sido aquela a gritar que não,
bem alto, estatelada no meio da praça, achei que fosse invencionice.
Mas, era não.
Tinha existido um tempo em que ela fazia barulho ao ocupar o mundo.
Um tempo em que ela tinha ousado lutar por direitos. Caminhava pelas
ruas com a cabeça erguida, os cabelos soltos, os olhos e o coração
abertos. Gritava que a mudança era necessária. Exigia educação,
saúde e direitos para toda a gente.
Mas, daí, no meio de uma manifestação ela foi agarrada por um
policial que tinha aprendido que ela era um dos inimigos. Ensinaram
para ele que o inimigo tem que ser tratado na base da porrada.
Disseram para ele que tortura era meio de investigação. Ele tinha
aprendido a obedecer e a partir os inimigos.
Ele enfiou a cabeça dela num barril cheio de água suja, esperou ela
chacoalhar o corpo em desespero, depois puxou-lhe de volta à
superfície, pelos cabelos. Mandou ela dizer os nomes dos outros. Ela
calou. Ele repetiu a tortura, de novo e outra vez. Ela aguentou e
ficou um centímetro menor.
O policial rasgou-lhe a roupa, amarrou-a numa cadeira e encheu-a de
choques. Outra vez mandou que ela dissesse os nomes dos outros
inimigos do Estado. Ela continuou calada. No fim daquela sessão de
tortura diminuiu outro centímetro.
Jogaram-na numa cela suja, cheia de ratos, vômito, baratas e merda.
Não apagaram as luzes, nem por um segundo. Disseram que se ela
dissesse os nomes ia poder ir para casa, dormir numa cama macia. Ela
calou e encolheu outro centímetro.
No dia seguinte disseram que terrorista de merda não podia ter
cabelo comprido. Mas, já que o dela era tão bonito, iam deixar ela
se despedir dele. Mandaram ela soltar o cabelo e desfilar pela sala,
nua. Ela não quis. Mas empurraram-na. Ela andou pela sala, enquanto
os guardas todos assoviavam, beliscavam todos os pedaços do
corpo dela e diziam coisas sujas. Quando já tinham se divertido o
suficiente rasparam-lhe o cabelo todo e depois jogaram-na de volta na
cela. No fim do dia ela já nem sabia o quanto tinha murchado. Tinha
diminuído tanto que já não era ela mesma. A outra tinha começado
a nascer.
Saiu da prisão depois de quase dois anos. Seu crime: ter dito não à
ditadura, em plena luz do dia. Ela foi ingênua, idealista,
sonhadora, e pagou com a própria carne por isso.
A mulher que eu vim a conhecer, a mulher que eu chamo de mãe é a
outra, acabada. A outra já não ousa dizer não, nem tampouco
sonhar. Ela repete os dias a espera da morte, em silêncio, com os
cabelos sempre escondidos debaixo de um lenço. Acho que tem medo de
mostrar o único pedaço seu que ainda sabe cantar liberdade.
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