bandido bom é bandido morto?
por Carol Stampone |
O que é que a gente realmente está dizendo quando repete que 'bandido bom é bandido morto'?
De qual bandido a gente está falando?
Quando a gente liga a tv e ouve a repórter sensacionalista derrubando o mundo com palavras, a gente esquece que ela fala dos invisíveis. Dos meninos e meninas que já nasceram sem uma chance. Ela fala daqueles que nasceram com a cor dos que não têm direitos. Aqueles que foram forçados a morar lá longe. Fora do centro do mundo. Fora do perímetro visitado pelos sonhos e pelo papai Noel.
Quando ela fala que 'bandido bom é bandido morto', ela não explica onde é que o bandido mora, nem a cor da pele dele. Está implícito. O bandido não é da nossa cor e não mora entre os nossos. É daquele outro mundo. Um mundo separado do meu. É de lá que todos os bandidos vêm. O bandido não é feito de carne, osso, alma, sonhos e trabalho, que nem eu, não. O bandido é um invasor, feito de carne, osso, vagabundagem, podridão e sangue ruim. O bandido é aquele que quer tomar o que é meu, porque não se contenta com o que tem, não se contenta com o seu lugar e ao invés de trabalhar, que nem eu, para constuir uma vida, quer simplesmente sair por aí roubando o fruto do esforço dos outros. O bandido é aquele que insiste em deixar a minha cidade mais feia. O bandido é aquele que me obriga a trancar a porta de casa e a gastar dinheiro fazendo seguro para o carro.
A repórter faz questão de enfatizar que o bandido é bandido porque quis. Repete os velhos ditados populares que servem à sua pauta: 'pau que nasce torto, nunca se endireita'. A gente até pensa que ela vai dar uma dançadinha e descer até o chão, tamanho o entusiasmo com que defende que não há outro jeito de acabar com os bandidos. 'A polícia tem que matar mesmo!' ela diz e continua. 'Se a pena de morte fosse legalizada no Brasil, a situação não estaria como está. Para esses bandidos vagabundos não adianta Febem, nem prisão, nem igreja. O bicho nasceu para ser bandido e não tem concerto mesmo. E é bandido porque é bicho ruim. Essa conversa de que é bandido porque nasceu na favela e não teve chance é tudo ilusão. Não viu aquela história lá do menino que nasceu na favela e virou doutor? E aquele outro que é pretinho e favelado e virou advogado? O bicho quando vira bandido é porque é vagabundo e ruim mesmo. Não tem jeito. Por isso é que a polícia tem que atirar para matar. É o único jeito de acabar com essas pestes', ela termina, satisfeita, pensando em quantos seguidores no twitter e quantos likes no facebook, aquele belo discurso cheio de ódio e certezas não lhe rendeu.
Por que é que ao invés de repetir o discurso da repórter sensacionalista a gente não olha para o mundo e vê quem ocupa quais lugares, de verdade? Quantos são os pobres, negros, moradores da favela e da periferia, que têm a chance de se formar doutores e advogados nesse nosso país ainda tão marcado pelos restos do colonialismo e da escravidão?
Quantos são os pobres, negros, moradores da favela e da periferia que vão ocupar o mundo dos invisíveis, na portaria do seu prédio, na cozinha da sua casa, na cozinha do escritório, construindo a sua casa, varrendo as ruas que você ocupa, certo de que são só suas e dos seus?
Quantos negros, pobres e moradores da favela ou da periferia estavam na mesma sala de aula que você, enquanto você fazia o seu curso superior? Na minha não tinha nenhum.
É fácil repetir que 'bandido bom é bandido morto' se a gente não para para pensar sobre os alcances dessa injustiça. E a gente anda muito ocupado para pensar em qualquer coisa que não nos diz respeito diretamente, né? A gente já tem que se preocupar com tanta coisa. É a parcela do carro, a mensalidade da escola, a taxa do clube de campo, a organização das férias. A gente vai pensar sobre os alcances de uma afirmação dessas? Quando? Quando for tomar uma cervejinha com os amigos é que não dá, né.
É mais fácil repetir apenas que 'bandido bom é bandido morto'. Repetir e fazer de conta que a gente não tem sangue nas mãos. O sangue do menino negro e pobre, que morreu numa chacina, numa perifeira distante. 'Que sangue nas mãos que nada! Eu não puxei gatilho nenhum'. Não? Mas e todas aquelas vezes que você repetiu que 'bandido bom é bandido morto'? Em todas aquelas vezes você alimentou a loucura do policial corrupto, que pensa que é justiceiro, o policial que serve a esse Estado violento e desigual. O policial que foi lá, naquela madrugada escura, naquela quebrada esquecida por deus e pelos homens. O policial que puxou o gatilho, por ele e por você. Puxou o gatilho para limpar o mundo dos bandidos todos, para você e para todos aqueles que acreditam que 'bandido bom é bandido morto'.
É mais fácil repetir que 'bandido bom é bandido morto' se a gente fecha os olhos à desigualdade social que está bem aqui, no meio de nós. A gente faz de conta que ela não existe e finge que não vê os seus braços e pernas e rabos crescendo e se espalhando pelo mundo. O problema é que vai chegar uma hora em que ela vai nos alcançar. E então?
Quando a desigualdade social virar um monstro ainda maior e mais faminto, quando ela precisar se alimentar de você também, quando a periferia já não for tão longe dos nossos muros altos, quando o bandido for o seu filho, o que é que você vai fazer?
Vai dizer para ele: 'que direitos humanos que nada! Esse blablabla de ficar dizendo que os bandidos são gente como a gente e devem ter os seus direitos respeitados é história para boi dormir. Quero ver bandido sendo gente que nem a gente, na hora de levantar cedo todo dia e ir trabalhar'.
Vai dizer para ele: 'desculpa aí filhinho, mas bandido bom é bandido morto'?
Bandido morto não rouba,não mata,não trafica,não estupra,não molesta,não aplica golpes.
ReplyDeletehttps://www.youtube.com/watch?v=qm6R3-GxSQo
Tá por fora da realidade hein Carol,a década de 60 já passou minha filha,estamos em 2016 e não 1966.
Olá. Refleti sobre o seu comentário e sobre o conteúdo do vídeo por você sugerido. Você pode ler a minha resposta aqui: http://www.carolstampone.blog.br/2016/04/eu-tambem-nao-quero-uma-policia-papel.html.
DeleteTiro o meu chapéu pra você. Parabéns.
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