a menina sem nome

por Carol Stampone

Ela não tinha nome. Estava abandonada numa casa cheia de outras crianças quebradas. Algumas tinham nome, outras, como ela, esperavam pelo amor de um desconhecido, que ia ganhar o direito de grudar neles um nome. O nome que ela ia carregar pela vida inteira. Uma vida que ia começar de verdade quando ela encontrasse uma família. 
A moça bonita que as vezes vinha nos fins de semana, com o carro cheio de refrigerante e doces talvez a levasse para casa. 
Da última vez em que ela tinha aparecido a menina sem nome pediu: 
_ A moça pode me levar para ser sua?
A moça bonita não disse nem que sim e nem que não. A menina sem nome achou que era porque ela precisava pensar. Afinal, carregar uma pessoa, mesmo que pequena e sem nome, é uma responsabilidade muito maior do que encher o carro de refrigerante e doces para encher a vida de uns pequenos desgraçados de alegria por um resto de tarde. 
Quando você carrega uma pessoa pequena para casa, dá nome para ela, conta história para ela dormir, compra uniforme para ela ir para escola, diz o que pode e o que não pode fazer, dizer, comer, etc., quando a pessoa decide fazer tudo isso é suposto ser uma responsabilidade e uma alegria para a vida inteira. 
Mas tem muita gente que começa e não termina. A menina sem nome sabia. 
Ela já tinha sido abraçada por estranhos que dissseram que iam dar para ela um mundo todinho de amor, uma casa e um nome. Mas deram para ela foi violência e desesperança. 
A menina sem nome já tinha visto muita feiúra nesse mundo. Uma pessoa que tem casa, nome e quem o ame, deve até achar difícil de acreditar quanta coisa feia uma menina sem nome, sem casa e sem amor pode ver em sete anos de vida. 
Ela ficava intrigada que as coisas mais feias do mundo começavam todas do mesmo jeito: desamor, desesperança, desespero, desrespeito, desigualdade. Ela se recusava a repetir essas palavras. As vezes até pensava que se ela achasse um jeito de reinventar a língua, se ela achasse um jeito de criar um mundo onde só existissem palavras bonitas, todas as faltanças da vida iam desaparecer. Mas daí ela ficou cansada de sonhar com o impossível. 
As pessoas que apareciam a procura de uma criança para amar só queriam saber de bebês brancos. Ela já tinha sete anos. Era uma menina, negra, e para piorar tudo, tinha cabelo ruim. A freira Teodora tinha avisado ela: "Se você não cuidar desse cabelo ruim, vai ficar cheia de piolhos e nunca vai achar uma família para te amar". 
A menina sem nome cuidou do cabelo que aprendeu a chamar de ruim e a encher de desamor, o melhor que pode. Com o tempo foi ficando cada vez mais difícil para ela conseguir dizer só palavras bonitas. Cada vez que ela era rejeitada, esquecida, ignorada era jogado encima dela mais um pouco de desamor e de desesperança, que grudavam-se a pele dela de um jeito doído. Ela até se machucava esfregando a pele na hora do banho, para ver se o desamor e a desesperança escorriam com a água e com o sabão. Tudo o que conseguiu foi desenhar desespero, na pele e na alma.
Apesar do desespero todo ela penteou o cabelo todos os dias. Se comportou bem e até agradeceu a deus por estar viva, como as freitas diziam que era a obrigação dela. Para não chatear ninguém ela fingia não atentar a loucura daquele agradecimento. Ela ajudou as freiras a cuidar dos menorzinhos e não reclamou de nada. Ela repetiu os dias assim, por cinco anos inteirinhos. 
Ontem acordou as cinco da manhã, como todos os outros dias. Entrou debaixo do chuveiro gelado para lavar a desesperança e o desespero, como fazia todos os dias. Enquanto esfregava a própria pele sentiu no seu corpo miúdo e fraco mais do que as injustiças habituais. Num instante as injustiças do mundo inteiro caíram-lhe encima. Ela sentiu-se irremediavelmente suja, lamacenta, pesada, impossível. Depois tudo aquilo se desfez. Foi embora com a água gelada. Mas a água gelada levou mais do que a injustiça invasora. Não sobrou coisa alguma. Ela permaneceu ali, debaixo da água fria, sentindo nada. Ela já não era. Não era a menina do cabelo ruim. Não era um poço de desamor e desesperança. Não era a menina sem nome, sem casa e sem amor. Não era aquela que assistia às famílias felizes partirem com seus bebês branquinhos no braço. Não era aquela que sempre ficava para trás pequena, invisível. Naquela manhã a menina sem nome não foi para o refeitório ajudar as freitas a servirem o café da manhã dos órfãos e órfãs todas. Ela saiu pela porta dos fundos. Caminhou duas horas até o mar.  Entrou no mar e deixou de existir. E o mundo nem sabe ainda que um dia ela existiu. 

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